A píton engole qualquer coisa por
inteiro.
Isso é tudo, no fim, uma litania de
loucura – as cores, os sons que faz em noites pesadas, o gorjeio no
ombro pela manhã. Pense em breves insanidades dentro de você, não
apenas as que floresceram conforme você se tornava uma versão mais
alta e pecaminosa de si, mas as que nasceram com você, escondidas
atrás do fígado. Considere-nos, por exemplo.
Não viemos sozinhos. Com uma força como
a nossa, arrastamos outras coisas conosco – um pacto, pedaços de
ossos, uma rocha ígnea, veludo gasto, e uma faixa de couro humano
amarrando tudo. Este objeto composto se chama iyi-uwa, o juramento do
mundo. É uma promessa que fizemos quando éramos livres e
flutuávamos, antes de adentrarmos A Ada. O juramento diz que
voltaremos, que não ficaremos neste mundo, que somos leais ao outro
lado. Quando espíritos como nós são colocados dentro de carne,
este juramento se torna um objeto real, que funciona como uma ponte.
Fica normalmente enterrado ou escondido, porque é o caminho de
volta, se você compreende que a porta é a morte. Humanos com bom
senso sempre procuram o iyi-uwa, para desenterrá-lo ou arrancá-lo
de carne, de qualquer lugar secreto onde esteja, para destruí-lo, de
modo que o corpo de seu filho não morra. Se o ventre de Ala carrega
o mundo inferior, então o iyi-uwa é o atalho de volta para ele. Se
os pais humanos de A Ada o encontrassem e o destruíssem, nunca
poderíamos voltar para casa.
Não éramos como outros ogbanje.
Não o escondemos debaixo de uma árvore ou dentro de um rio ou nas
fundações enroladas da casa de Saul na aldeia. Não, nós o
escondemos muito melhor. Nós o desmontamos e o espalhamos. A Ada
veio com ossos, de qualquer modo – quem perceberia os fragmentos
entrelaçados? Escondemos a rocha ígnea na boca de seu estômago,
entre o revestimento mucoso e a camada muscular. Sabíamos que a
atrasaria, mas Ala carrega um mundo de almas mortas dentro de si –
o que seria uma simples pedra para sua filha? Colocamos o veludo
dentro das paredes da vagina e cuspimos no couro humano, molhando-o
como um riacho. Ele se ondulou e ganhou vida, e nós o esticamos
sobre as omoplatas, colocando-o sobre as costas e costurando-o à sua
outra pele. Nós a transformamos no juramento. Para destruí-lo, eles
teriam que destruí-la. Para mantê-la viva, eles teriam que mandá-la
de volta.
Nós a fizemos nossa de diversas
maneiras, e mesmo assim esmagávamos a criança. Mesmo que nos
mantivéssemos enrolados e inativos dentro dela, ela já sentia a
perturbação que nossa presença causava. Dormimos tão mal naquela
primeira década. A Ada vivia tendo pesadelos, sonhos aterrorizantes
que a levavam de novo e de novo para a cama dos pais. Eram as horas
escuras da manhã e ela despertava em um medo de suar frio e entrar
no quarto deles na ponta dos pés, abrindo a porta gentilmente com um
rangido. Saul sempre dormia no lado da cama mais perto da porta, com
Saachi a seu lado, perto da janela. A Ada ficava ao lado da cama com
lágrimas escorrendo pelo rosto, abraçando o travesseiro até um
deles sentir que ela estava lá e acordar para encontrá-la soluçando
no escuro, vestindo o pijama vermelho com blusa listrada de branco.
– O que aconteceu? – mil vezes.
– Tive um pesadelo.
Coitadinha. Não era culpa dela – ela
não sabia o que vivia dentro de si, não ainda. Como uma criança
chutando enquanto dorme, atingíamos sua mente inconsciente,
mexendo-a e virando-a. Os portões estavam abertos e ela era a ponte.
Não tínhamos controle; estávamos sempre sendo puxados de volta
para casa, e quando ela estava inconsciente, havia mais deslize, mais
impulso naquela direção.
A Ada nos surpreendeu, no entanto, quando
começou a adentrar nosso domínio. Acontecia um pesadelo, suspiros
cortados de medo enquanto nos batíamos, e então, em uma noite, de
repente, ela estava lá ao nosso lado, observando o sonho, tentando
sair. Ela tinha sete ou oito anos e seus olhos eram jovens e
calculistas – ela era brilhante, mesmo antes de a afiarmos. Era um
dos motivos por que Saul casara com Saachi; ele dizia que precisava
de uma mulher inteligente para lhe dar filhos que seriam gênios.
No sonho, A Ada imaginou uma colher. Foi
estranho, só uma colher de sopa normal, flutuando. Mas era de metal
e fria, o que a tornava real. Perto dela, toda a bile que vínhamos
criando era tão obviamente falsa. Ela olhou para a colher,
identificou a que domínio pertencia (ao dela, não ao nosso), e
acordou. Ela fez isso de novo e de novo, escapando de pesadelos.
Chegou um momento em que nem precisava mais da colher. O sonho se
retorcia, ficando escuro, e A Ada lembrava a si de quem era, que,
sim, ela estava em um sonho cheio de horror, mas ela ainda tinha o
poder de ir embora. Com isso, ela se arrastava para fora através de
camadas viscosas de consciência até estar acordada, totalmente, as
costelas doendo. Ela, nossa coleçãozinha de carne, tinha construído
uma ponte sozinha. Ficamos tão orgulhosos. Nós a assistíamos de
nosso domínio, naqueles tempos em que não estávamos prontos para
acordar.
E então, um dia, chegou o despertar.
Era dezembro, durante o harmatão, quando
A Ada estava na aldeia. Saul sempre levava a família para Umuecheoku
para o Natal, e depois A Ada ia para Umuawa passar o Ano Novo com a
melhor amiga, Lisa. A família de Lisa era um clã bagunceiro e
barulhento, pessoas que seguravam A Ada em seus braços e lhe davam
beijos de boa noite e bom dia. A Ada não era acostumada a tanto
contato. Saul e Saachi não tinham o costume de abraçar, não assim.
Então ela amava a família de Lisa, e foram eles que a levaram à
cerimônia mascarada onde nosso despertar chegou.
Aquela noite estava preta como tamarindo
aveludado, espessa de um jeito que fazia as pessoas andarem juntas
umas das outras, amontoadas em um grupo que se movia até a praça da
aldeia. A Ada ouviu a música antes de chegarem à multidão
pulsante. Uma por uma, as pessoas ao redor começaram a amarrar
bandanas e lenços sobre o nariz e a boca antes de mergulhar na nuvem
de poeira onde estavam todos dançando e se jogando na música, nos
sons do ekwe e do ogene.
Lisa entregou-lhe um lenço branco, o
algodão caindo sobre seus dedos como a asa de uma garça. A Ada
pausou na beirada, os chinelos afundando brevemente na areia pálida
e pesada, e observou. A batida rápida do ekwe era alta e baixa,
baixa baixa baixa, alta alta, o som forte e ensurdecedor. Lisa entrou
na multidão, os olhos enrugados de riso acima da bandana vermelha
enrolada no rosto. A Ada sentiu o coração cambalear com o ogene.
Amarrou o lenço ao redor do rosto e os pés levantaram,
arremessando-a para dentro da massa dançante. A poeira flutuava no
ar, leve contra o rosto, gentilmente arranhando os olhos. Respirava
na pele. Areia voejou por seus pés e a pele em suas costas comichou.
Os tambores balançavam tudo, e a
multidão se separou em uma pressa frenética quando os mascarados se
lançaram sobre as pessoas, brandindo chicotes e rompendo o ar. A
ráfia voava selvagem ao redor deles, o couro de vaca brotando como
uma fonte de suas mãos. As coleiras estavam amarradas ao redor de
suas cinturas e os domadores gritavam e puxavam enquanto os
mascarados açoitavam as pessoas com nítido deleite. A música
cantava comandos em uma antiga linguagem herdada. Ela adentrou nosso
sono, nosso repouso inquieto; nos chamava tão claramente quanto
sangue.
Você já nos esqueceu?
Arrepiamos. A voz era familiar, em
camadas e muito, muito metal rasgando o ar. O chão tremeu.
Não esquecemos nenhuma de suas
promessas, nwanne anyi.
O ar rachou quando nos lembramos. Era o
som de nossos irmãosirmãs, os outros filhos de nossa mãe, os que
não atravessaram conosco. Ndi otu. Ogbanje. Suas máscaras
terrenas atravessavam os humanos e tinham o cheiro dos portões,
calcário azedo. Cerimônias mascaradas convidam espíritos,
dando-lhes corpos e rostos, e por isso eles estavam aqui, nos
reconhecendo em meio a suas brincadeiras.
O que vocês estão fazendo dentro
desta menina tão pequena?
A Ada levantou os braços e girou. As
pessoas ao redor espalharam-se repentinamente e ela correu junto,
gritando quando um mascarado se jogou em sua direção. Ele parou e
levantou-se, balançando suavemente. Tinha uma cara grande da cor de
ossos velhos, uma boca crua e vermelha. Estava envolto em panos roxos
e equilibrava um ornamento esculpido na cabeça, pintado em cores
vivas. A luz da lua se derramava sobre sua forma. Estremecemos em
nosso sono, o gosto de calcário limpo passando através de nós.
Irmãoirmã inclinou a cabeça e o ornamento angulou-se agudamente
contra o céu escuro. Estava com raiva.
Acorde!
Com o som de sua voz, bem dentro de A
Ada, mais fundo do que as cinzas de seus ossos, nossos olhos
rasgaram-se. O domador do mascarado puxou a corda que estava em sua
cintura e eles se afastaram. A Ada ficou paralisada por um momento
até Lisa aparecer, agarrando suas mãos e girando em círculos.
Foram embora um pouco depois da
meia-noite, os primos de Lisa rindo e quebrando garrafas de cerveja
no chão em um jato de vidro verde. Em casa, A Ada desamarrou o lenço
e o segurou, desdobrado. Havia três marcas marrons, duas para suas
narinas, uma para sua boca. Queríamos que ela o tivesse guardado,
mas humanos são assim. Coisas importantes escapam no momento, quando
ele está nítido e eles são jovens o bastante para acreditar que o
sentimento permanecerá. Depois, A Ada lembraria daquela noite com
estranha clareza como um dos poucos momentos genuinamente felizes de
sua infância. Naquele momento, quando nossos olhos abriram na praça
empoeirada da aldeia e acordamos no mundo dela e no nosso pela
primeira vez, foi tudo puro esplendor. Éramos um, juntos, em
equilíbrio por um breve momento aveludado em uma noite aldeã.
Perguntamo-nos nos anos que se seguiram o
que ela teria sido sem nós, se ela ainda teria enlouquecido. E se
nós tivéssemos permanecido adormecidos? E se ela tivesse ficado
para sempre naqueles anos em que pertencia a si? Olhe para ela,
rodopiando pelo condomínio vestindo shorts pretos de batik e uma
camiseta de algodão, o longo cabelo preto trançado em dois arcos
amarrados com fitas coloridas, os dentes brilhando e um chinelo
arrebentado. Como um sol ofegante.
A primeira loucura foi que nascemos, que
enfiaram um deus em um saco de pele.
Akwaeke Emezi, in Água Doce
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