A enfermeira surgida de uma porta me
impôs silêncio com o dedo junto aos lábios e mandou-me entrar.
Estava nascendo! Era um menino.
Nem bonito nem feio; tem boca, orelhas,
sexo e nariz no seu devido lugar, cinco dedos em cada mão e em cada
pé. Realizou a grande temeridade de nascer, e saiu-se bem da
empreitada. Já enfrentou dez minutos de vida. Ainda traz consigo,
nos olhinhos esgazeados, um resto de eternidade.
Portanto, alegremo-nos. A vida também
não é bonita nem feia. Tem bocas que murmuram preces, orelhas
sábias no escutar, sexos que se contentam, perfumes vários para o
nariz, mãos que se apertam, dedos que acariciam, múltiplos caminhos
para os pés. É verdade que algumas palavras, melhor fora nunca
dizê-las, outras nunca escutá-las. Olhos há que procuram ver o que
não podem, alguns narizes se metem onde não devem. Há muito prazer
insatisfeito, muito desejo vão. Mãos que se fecham. Pés que se
atropelam. Mas o simples ato de nascer já pressupõe tudo isso, o
primeiro ar que se respira já contém as impurezas do mundo. O
primeiro vagido é um desafio. A vida aceitou um novo corpo e o
batismo vai traçar-lhe um destino. A luta se inicia: mais um que
será salvo. Portanto, alegremo-nos.
Menino sem nome ainda, não te prometo
nada. Não sei se terás infância: brinquedos, quintal, monte de
areia, fruta verde, casca de árvore, passarinho, porão de
fantasmas, formigas em fila, beira de rio, galinha no choco, caco de
vidro, pé machucado. O mundo de hoje, tal como o estou vendo da
janela do meu apartamento, desconfio que te reserva para a infância
um miraculoso aparelho eletrocosmogônico de brincar. Ou apenas uma
eterna garrafa de Coca-Cola e um delicioso Chicabon.
Aceita, menino, esses inofensivos
divertimentos. Leva-os a sério, com toda aquela seriedade grave da
infância, chupa o Chicabon, bebe a Coca-Cola, desmonta e torna a
montar a miraculosa máquina de brincar de nosso século que a
imaginação de teu pai jamais poderia sequer conceber. Impõe a
essas coisas e a essa vida que te oferecerão como infância a
sofreguidão da tua boca, a ousadia de teus olhos e a força de tuas
mãos. Imprime a tudo que tocares a alegria que me deste por
nasceres. Qualquer que seja a tua infância, conquista-a, que te
abençoo. Dela te nascerá uma convicção. Conquista-a também ― e
vá viver, em meu nome. Nada te posso dar senão um nome.
Nada te posso dar. No teu primeiro
instante de vida minha estrela não se apagou. Partiu-se em duas e lá
no alto uma delas te espera, será tua. Nada te posso dar senão um
nome e esta estrela. Se acreditares em estrela, vai buscá-la.
Fernando Sabino, in A mulher do vizinho
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