Aquilo não ia ter pique de ponto, guerra
que não se sabe terminar? Assunto que apostaram os mil tiros para
cima de nossa redondez de lugar, esses assoviaços. Triplavam. No
ferrenho, tive um tempo de coisa, espécie de mais medo, o que um não
confessa: vara verde, ver. Mas, morresse, eu descansava. Descansava
de todo desânimo. Andando que aquele ataque nosso não servia para
resultado nenhum, e eu carecia de avistar os outros, saber de
qualquer contagem de balanço, de quantos tinham morrido ou estavam
mal. Eu queria saber, dos deles e dos nossos. Combate sem cabimento!
Só o tiroteio, repetido reproduzido. Meio peguei um pensamento: se o
Hermógenes sungasse raiva, se o Ele desse nele, por um vir? Que
mandasse avançasse, a fino de faca, nós todos tínhamos de avançar?
Então, eu estava ali era feito um escravo de morte, sem querer meu,
no puto de homem, no danadório! E eu não podia virar só o corpo um
pouco, abocar minha arma nele Hermógenes, desfechar? Podia não,
logo senti. Tem um ponto de marca, que dele não se pode mais voltar
para trás. Tudo tinha me torcido para um rumo só, minha coragem
regulada somente para diante, somente para diante; e o Hermógenes
estava deitado ali, em mim encostado ― era feito fosse eu mesmo.
Ah, e toda hora ele estava, sempre estava. Que me disse! ―
Tatarana, toma, come, e agradece ao corpo um poucado... Há-de que
estava me oferecendo a capanga, paçoca de carnes. Tanto que os tiros
tinham esbarrado quase em completo, em partes. Eu, tendo comida
minha, de matula, no bornal. Aí, e munição minha de balas, no
surrão. Eu carecia lá do Hermógenes? Mas, por que foi então que
aceitei, que mastiguei daquela carne, nem fome acho que não tinha
direito, enguli daquela farinha? E pedi água. ― Mano velho, bebe,
que esta é competente... ― ele riu. O que estava me dando, na
cabacinha, era água com cachaça. Bebi. Limpei os beiços. Escorei o
cano do rifle, num duro de môita. Eu olhava aquele bom suor, nas
costas do Garanço. Ele atirava. Eu atirava. A vida era assim mesmo,
coração quejando. Até me caceteou uma lombeira.
E, daí, deu-se. Da banda de longe ― lá
pelo tombador de pedra, onde nossa gente com Titão Passos estavam
escondidos para a esparrela ― foi um tirotear forte, fogo por
salvas. Ah, então era outra partida de zè-bebelos que deviam de
estar chegando, drongo deles, cavaleiros. O Hermógenes esticou
pescoço, rijo ouvindo. Soante que atiravam, sucedidos, o tiroteio
foi mudando de feição. ― Tou gostando não... ― o que o
Hermógenes disse. Mais disse! ― O diabo deu em erro... Homem
atilado, cachorral. ― Seja que sabidos vieram, eh, pressentiram!
Sei se, por ora, o trabalho está desandado... Aí, eu estava
escutando. Eu olhei. Olhava para as costas do Garanço, ela, a
mancha, estava ficando de outra cor... O suor vermelho... Era sangue!
Sangue que empapava as costas do Garanço ― e eu entendi demais
aquilo. O Garanço parado quieto, sempre empinado com a frente do
corpo, semelhando que o cupim ele tivesse abraçado. A morte é
corisco que sempre já veio. Ânsias, ao em que bola me vinha goela
arriba, do arrocho grosso, imposto, que às vezes em lágrimas nos
olhos se transforma. A bobagem...
― Tu, Tatarana, Riobaldo: agora é a má
hora! ― era o Hermógenes prevenindo. ― Demo! ― eu repontei.
Mas ele não entendeu minha soltura. Soprou: ― A muita cautela.
Temos, que se foge em boa ordem: os que estão chegando vêm rodear a
gente, vão dar retaguarda. E era. Como que esse maldito tudo sabia,
adivinhava o seguinte vivo das coisas, esse Hermógenes, trapaças!
Mas ainda me prezei: quem é que me segurava de ir?! ― rastejei de
esquinado, os metros, em afogo, carecia de ver se o Garanço podia
ter ajuda. ― A pa trás, mano. Te cuida! ― ouvi o rispe do
Hermógenes ― que eu não me desgraçasse. Mas não se deixa um
cristão amigo deitar seu sangue no capim das môitas, feito um
traste roto, caititú caçado. Peguei, com meus braços: não
adiantava ― era corpo. Ele estava defunto de não fechar boca ―
aí, defunto airado. Todo vejo, o sangue dele a mofos cheirasse. Anda
que vinham voo os mosquitos chupadores, e mosca-verde que se ousou,
sem o zumbo frisso, perto no ar. Porque os tiros. E nem um momento de
vela acesa o Garanço não ia poder ter. ― Vem, tu vem, que estamos
no amém estreitos! ― que, enfezado, o Hermógenes chamou. Dei para
trás. O perigo saca toda tristeza. E a vez era esta: que o
Hermógenes encheu os peitos, e soltou um rinchado zurro, dos de
jumento velho em beira de campo.Três tantos. Ele estava dando a
retirada. Por outros lados, mais longe, outros o mesmo onco-e-rincho
copiavam. ― Arre, fogo, agora, forte fogo! ― o Hermógenes me
mandou. Atirei. Atiramos, teúdo. Ao que os companheiros todos
atiravam. Assaz à retirada se estava rinchando, mas os inimigos não
sabiam: carecia que eles pensassem que a gente ia dar um ataque
final. Acharam? E sei. A bala com bala ripostavam. Mas, nós, nesse
entrequanto, rompemos o arvoredo, aqui e ali, rojamos para baixo,
embora, mesmo. Desunir, assim, verga pior do que avançar. A lanço a
lanço, fui, pulei, nos abertos entre árvores, acompanhei o
Hermógenes. Aí, eu já estava para lá dele; mas virei e esperei.
Porque, na desordem de mente do alvoroço, aquela hora era só no
Hermógenes que eu via salvamento, para meu cão de corpo. Quem que
diz que na vida tudo se escolhe? O que castiga, cumpre também. Vim.
Ainda divulguei, nas sofraldas descentes, homens que corriam, meus
iguais, às vezes se subiam do bamburral baixo, feito acãoada
codorniz. Viemos. Repassamos o corguinho do Dinho, beiramos uma
ipueira. Entramos no cerrado. ― Tu tem tudo, Tatarana? Munição,
as armas? ― o Hermógenes me indagou. ― Tenho, se tenho! ― eu
respondi, bem. E ele para mim! ― Então, está certo... Agora ele
falasse grosseado, com modo de chefe e mando, era assim. E fomos para
cinco léguas, entre o norte e o poente, no Cansanção, lugar aonde
um punhado dos da gente devia de se engrupar. Para lá fomos, de
rastros apagados. Caminhamos prazo dentro de riacho, depois
escolhemos para pisar pedras, de nosso pisado com ramos as marcas
desmanchamos, e o mais do caminho se seguiu por muitos diversos
rodeios.
De tudo não falo. Não tenciono relatar
ao senhor minha vida em dobrados passos; servia para que? Quero é
armar o ponto dum fato, para depois lhe pedir um conselho. Por daí,
então, careço de que o senhor escute bem essas passagens! da vida
de Riobaldo, o jagunço. Narrei miúdo, desse dia, dessa noite, que
dela nunca posso achar o esquecimento. O jagunço Riobaldo. Fui eu?
Fui e não fui. Não fui! ― porque não sou, não quero ser. Deus
esteja!
Guimarães Rosa, in Grande sertão: veredas
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