No
centro do dia cinzento, no meio da banal viagem, e nesse momento em
que a custo equilibramos todos os motivos de agir e de cruzar os
braços, de insistir e desesperar, e ficamos quietos, neutros, presos
ao mais medíocre equilíbrio – foi então que aconteceu. Eu vinha
sem raiva nem desejo – no fundo do coração as feridas mal
cicatrizadas, e a esperança humilde como ave doméstica – eu vinha
como um homem que vem e vai, e já teve noites de tormentas e
madrugadas de seda, e dias vividos com todos os nervos e com toda a
alma, e charnecas de tédio atravessadas com a longa paciência dos
pobres – eu vinha como um homem que faz parte da sua cidade, e é
menos um homem que um transeunte, e me sentia como aquele que se vê
nos cartões-postais, de longe, dobrando uma esquina – eu vinha
como um elemento altamente banal, de paletó e gravata, integrado no
horário coletivo, acertando o relógio do meu pulso pelo grande
relógio da estrada de ferro central do meu país, acertando a batida
do meu pulso pelo ritmo da faina quotidiana – eu vinha, portanto,
extremamente sem importância, mas tendo em mim a força da
conformação, da resistência e da inércia que faz com que um
minuto depois das grandes revoluções e catástrofes o sapateiro
volte a sentar na sua banca e o linotipista na sua máquina, e a
cidade apareça estranhamente normal – eu vinha como um homem de
quarenta anos que dispõe de regular saúde, e está com suas letras
nos bancos regularmente reformadas e seus negócios sentimentais
aplacados de maneira cordial e se sente bem disposto para as tarefas
da rotina, e com pequenas reservas para enfrentar eventualidades não
muito excêntricas – e que cessou de fazer planos gratuitos para a
vida, mas ainda não começou a levar em conta a faina da própria
morte – assim eu vinha, como que ama as mulheres de seu país, as
comidas de sua infância e as toalhas do seu lar – quando
aconteceu. Não foi algo que tivesse qualquer consequência, ou
implicasse novo programa de atividades; nem uma revelação do Alto
nem uma demonstração súbita e cruel da miséria de nossa condição,
como às vezes já tive.
Foi
apenas um instante antes de se abrir um sinal numa esquina, dentro de
um grande carro negro, uma figura de mulher que nesse instante me
fitou e sorriu com seus grandes olhos de azul límpido e a boca
fresca e viva; que depois ainda moveu de leve os lábios como se
fosse dizer alguma coisa – e se perdeu, a um arranco do carro, na
confusão do trafego da rua estreita e rápida. Mas foi como se,
preso na penumbra da mesma cela eternamente, eu visse uma parede se
abrir sobre uma paisagem úmida e brilhante de todos os sonhos de
luz. Com vento agitando árvores e derrubando flores, e o mar
cantando ao sol.
Rubem Braga, in 200 crônicas escolhidas
Nenhum comentário:
Postar um comentário