Dito não fazia companhia, falava que
carecia de ouvir as conversas todas das pessoas grandes. Miguilim não
tinha vontade de crescer, de ser pessoa grande, a conversa das
pessoas grandes era sempre as mesmas coisas secas, com aquela
necessidade de ser brutas, coisas assustadas. O gato Sossõe, certa
hora, entrava. Ele vinha sutil para o paiol, para a tulha, censeando
os ratos, entrava com o jeito de que já estivesse se despedindo, sem
bulir com o ar. Mas, daí, rodeando como quem não quer, o gato
Sossõe principiava a se esfregar em Miguilim, depois deitava perto,
se prazia de ser, com aquela ronqueirinha que era a alegria dele, e
olhava, olhava, engrossava o ronco, os olhos de um verde tão menos
vazio — era uma luz dentro de outra, dentro doutra, dentro doutra,
até não ter fim.
A gente podia ficar tempo, era bom, junto
com o gato Sossõe. Ele só fugiu quando escutou barulho de vir
chegando na tulha aquele menino dentuço, o Majela, filho de seo
Deográcias, mas que todos chamavam de o Patorí.
Seo Deográcias falava tão engraçado: ―
“O senhor, seo Nhô Berno, podia ter a cortesia de me agenciar para
mim um dinheirozinhozinhozinho pouco, por ajuda?” — “Quem dera
eu tanto tivesse como o senhor, seo Deográcias!” ― o Pai
respondia. ― “Ara, qual, qual, seo Nhô Berno Cássio, eu estou
pobre como aguinha em fundo de canoa... Achasse um empréstimo,
comprava adquirido um bom cavalo de sela... Podia até vir mais
amiúde, por uma prosa, servo do senhor, sem grave pecado de
incomodar....” ― “Pois, aqui, seo Deográcias, o senhor é
sempre bem aparecido...”
Contavam que esse seo Deográcias estava
excomungado, porque um dia ele tinha ficado agachado dentro de
igreja. Mas seo Deográcias entendia de remédios, quando alguém
estava doente ele vinha ver. Era viúvo. Morava ali a diversas
léguas, na Vereda-do-Cocho. Agora tinha viajado de vir para pedir
uma pouca de sal e de café, por emprestados, e um pedaço de
carne-de-vento ― quando matassem boi, lá, pagava de volta. O
Patorí, ele trouxe junto. ― “Vem, Miguilim, ajudar a tacar
pedra: os meninos acharam um sapo enorme!” ― o Patorí gritando
já vinha.
Miguilim não queria ir, não gostava de
sapos. Não era como a Chica, que puxava a rã verde por uma perna,
amarrava num fio de embira, prendia-a no pau da cerca. Por paz, não
estava querendo também brincar junto com o Patorí, esse era um
menino maldoso, diabrava. — “Ele tem olho ruim”, ― a Rosa
dizia ― “quando a gente está comendo, e ele espia, a gente pega
dor-de-cabeça...”
“Então, vem cá, Miguilim. Olha
aqui...” ― o Patorí mostrava bala doce, embrulhada em papelim,
tirava da algibeira. Miguilim aceitava. Mas era uma pedra, de dentro
do papel. O Patorí ria dele, da logradela: ― “Enganei meu
burrinho, com uma pedrinha de sal!...” Aqueles dentes dentuços! ―
“A bala eu chupei, estava azedinha gostosa...” ― ainda dizia,
depois, mais malino. ― “Mas, agora, Miguilim, vou te ensinar uma
coisa, você vai gostar. Sabe como é que menino nasce?” Miguilim
avermelhava. Tinha nojo daquelas conversas do Patorí, coisas porcas,
desgovernadas. O Patorí escaramuçava o Dito e Tomezinho: ― “Foge
daí! Não quero brincar com menino-pequeno!” ― proseava. E
tornava a falar. Inventava que ia casar com Drelina, quando
crescesse, que com ela ia se deitar em cama. Ensinava que, em antes
de se chupar a bala doce, a gente devia de passar ela no tamborete
onde moça bonita tivesse sentado, meio de arte. Contava como era
feita a mãe de Miguilim, que tinha pernas formosas... — “Isso tu
não fala, Patorí!” ― Miguilim dava passo. ― “A já! E eu
brigo com menino menorzinho do que eu?! Tu bobeia?” O Patorí
debochava. Saía para o pátio. Daí, quando Miguilim estava
descuidado, o Patorí pegava um punhado de lama, jogava nele,
sujando. Miguilim sabia que não adiantava acusar: ― “Não foi
por querer...” ― o Patorí sempre explicava aos mais velhos ―
“Eu até gosto tanto de Miguilim...” Mas o Dito chegava, tendo
visto, o Dito era muito esperto: ― “Sabe, Patorí, o vaqueiro
Salúz está caçando você, pra bater, disse que você furtou dele
uma argola de laço!” Aí o Patorí pegava medo, corria para dentro
de casa, não saía mais de perto do pai.
Guimarães Rosa, in Manuelzão e Miguilim
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