quinta-feira, 10 de dezembro de 2020

Patorí, um menino endiabrado

          Dito não fazia companhia, falava que carecia de ouvir as conversas todas das pessoas grandes. Miguilim não tinha vontade de crescer, de ser pessoa grande, a conversa das pessoas grandes era sempre as mesmas coisas secas, com aquela necessidade de ser brutas, coisas assustadas. O gato Sossõe, certa hora, entrava. Ele vinha sutil para o paiol, para a tulha, censeando os ratos, entrava com o jeito de que já estivesse se despedindo, sem bulir com o ar. Mas, daí, rodeando como quem não quer, o gato Sossõe principiava a se esfregar em Miguilim, depois deitava perto, se prazia de ser, com aquela ronqueirinha que era a alegria dele, e olhava, olhava, engrossava o ronco, os olhos de um verde tão menos vazio — era uma luz dentro de outra, dentro doutra, dentro doutra, até não ter fim.
A gente podia ficar tempo, era bom, junto com o gato Sossõe. Ele só fugiu quando escutou barulho de vir chegando na tulha aquele menino dentuço, o Majela, filho de seo Deográcias, mas que todos chamavam de o Patorí.
Seo Deográcias falava tão engraçado: ― “O senhor, seo Nhô Berno, podia ter a cortesia de me agenciar para mim um dinheirozinhozinhozinho pouco, por ajuda?” — “Quem dera eu tanto tivesse como o senhor, seo Deográcias!” ― o Pai respondia. ― “Ara, qual, qual, seo Nhô Berno Cássio, eu estou pobre como aguinha em fundo de canoa... Achasse um empréstimo, comprava adquirido um bom cavalo de sela... Podia até vir mais amiúde, por uma prosa, servo do senhor, sem grave pecado de incomodar....” ― “Pois, aqui, seo Deográcias, o senhor é sempre bem aparecido...”
Contavam que esse seo Deográcias estava excomungado, porque um dia ele tinha ficado agachado dentro de igreja. Mas seo Deográcias entendia de remédios, quando alguém estava doente ele vinha ver. Era viúvo. Morava ali a diversas léguas, na Vereda-do-Cocho. Agora tinha viajado de vir para pedir uma pouca de sal e de café, por emprestados, e um pedaço de carne-de-vento ― quando matassem boi, lá, pagava de volta. O Patorí, ele trouxe junto. ― “Vem, Miguilim, ajudar a tacar pedra: os meninos acharam um sapo enorme!” ― o Patorí gritando já vinha.
Miguilim não queria ir, não gostava de sapos. Não era como a Chica, que puxava a rã verde por uma perna, amarrava num fio de embira, prendia-a no pau da cerca. Por paz, não estava querendo também brincar junto com o Patorí, esse era um menino maldoso, diabrava. — “Ele tem olho ruim”, ― a Rosa dizia ― “quando a gente está comendo, e ele espia, a gente pega dor-de-cabeça...”
Então, vem cá, Miguilim. Olha aqui...” ― o Patorí mostrava bala doce, embrulhada em papelim, tirava da algibeira. Miguilim aceitava. Mas era uma pedra, de dentro do papel. O Patorí ria dele, da logradela: ― “Enganei meu burrinho, com uma pedrinha de sal!...” Aqueles dentes dentuços! ― “A bala eu chupei, estava azedinha gostosa...” ― ainda dizia, depois, mais malino. ― “Mas, agora, Miguilim, vou te ensinar uma coisa, você vai gostar. Sabe como é que menino nasce?” Miguilim avermelhava. Tinha nojo daquelas conversas do Patorí, coisas porcas, desgovernadas. O Patorí escaramuçava o Dito e Tomezinho: ― “Foge daí! Não quero brincar com menino-pequeno!” ― proseava. E tornava a falar. Inventava que ia casar com Drelina, quando crescesse, que com ela ia se deitar em cama. Ensinava que, em antes de se chupar a bala doce, a gente devia de passar ela no tamborete onde moça bonita tivesse sentado, meio de arte. Contava como era feita a mãe de Miguilim, que tinha pernas formosas... — “Isso tu não fala, Patorí!” ― Miguilim dava passo. ― “A já! E eu brigo com menino menorzinho do que eu?! Tu bobeia?” O Patorí debochava. Saía para o pátio. Daí, quando Miguilim estava descuidado, o Patorí pegava um punhado de lama, jogava nele, sujando. Miguilim sabia que não adiantava acusar: ― “Não foi por querer...” ― o Patorí sempre explicava aos mais velhos ― “Eu até gosto tanto de Miguilim...” Mas o Dito chegava, tendo visto, o Dito era muito esperto: ― “Sabe, Patorí, o vaqueiro Salúz está caçando você, pra bater, disse que você furtou dele uma argola de laço!” Aí o Patorí pegava medo, corria para dentro de casa, não saía mais de perto do pai.

Guimarães Rosa, in Manuelzão e Miguilim

Nenhum comentário:

Postar um comentário