segunda-feira, 14 de dezembro de 2020

O nascimento do Posto das Lebres

           — Reconhece este sujeito? — perguntou Aparício, enquanto se acomodava na cadeira de jacarandá que pertencera ao seu avô. Ele trazia nas costas o peso do tempo, mas ainda mantinha na face serena a imponência dos tempos da mocidade.
Buenas, seu Hermes — disse o jovem Lauro estendendo a mão para cumprimentar o homem. O velho Hermes, gaúcho retaco e barrigudo, respondeu ao cumprimento com má vontade, agarrando a mão de Lauro pela ponta dos dedos, e ficou em silêncio, apenas encarando o rapaz.
Lauro imediatamente entendeu o que estava acontecendo. Desde o verão passado, vinha se encontrando às escondidas com Ana, filha de Hermes. Mas, ainda naqueles dias, depois de um baile de ramada e uns tragos de vinho, conseguira arrastar a morena pras sombras de um galpão e lá mesmo fez o estrago. Teve que espantar da cabeça os pensamentos para conseguir conter o fino sorriso que insistia em lhe brotar dos lábios.
Não tens nada pra nos contar, Lauro? — indagou Aparício da Silva Bueno, com as mãos cruzadas sobre a barriga e os polegares dançando em volta do eixo.
Com todo respeito, meu padrinho, se estamos aqui é porque nem preciso contar nada — disse ele.
Hermes, que a tudo assistia calado, levantou-se da cadeira, apertou os olhos inquisidores e ficou estudando Lauro. Respirou forte, alisou a gola de seu casaco e disse:
Pois bem, se não tens nada para me contar, tampouco pede desculpas, imagino que tenhas alguma solução para o mal que fizeste?
Aparício acompanhava a cena em um silêncio respeitoso, afinal, também era pai e daria todo o apoio para o velho Hermes, decidisse o que decidisse.
Com perdão, seu Hermes. Errei e não nego. Mas quero que vosmecê saiba que gosto muito da sua filha Ana. — Lauro fez uma pequena pausa para tomar coragem. — Se o senhor consentir, eu tenho uma proposta. Mas meu padrinho teria que concordar também.
Lauro Contreras, como bom contador de histórias que era, deixou sua frase fazer o efeito desejado e ficou aguardando a reação dos interlocutores.
Pois fala duma vez, menino! Não temos a noite toda! — disse o padrinho.
Bem, com tudo que aprendi sobre a lida e os negócios com o senhor, tenho pensado muito na situação lá no campo das “lebre”. Como aquela ponta de campo é muito longe, está meio abandonada. É quase uma tropeada ir lá recorrer e, além do que, o gado que está lá engordando pode acabar se extraviando por aí, ou algo pior. Quem sabe, se o seu Hermes achar que é certo, levanto um rancho lá naquele fundão e cuido do que tiver por lá. Fico de posteiro da estância e ainda me junto com a Ana pra reparar o mal que fiz.
O velho Aparício, pensativo, batia os dedos compassadamente em sua escrivaninha. Hermes, por sua vez, acendeu um cigarro, deu uma tragada e, ao assoprar a fumaça na fronte do outro, não escondeu o sorriso.
O mal está feito e não tem como desfazer. Senhor Aparício, ficaria muito grato se vosmecê concedesse o posto pra este rapaz levar minha filha a morar com ele.
O posto está concedido — disse Aparício. — Parabéns pelo casório, então, seu Lauro!
Hermes ficou feliz em ter uma boca a menos no rancho e de ter a filha apadrinhada por um dos estancieiros mais ricos da região.
Parabéns, gaúcho! Assim, evitaste que Ana enviuvasse antes de casar e de colocar mais um guri sem pai pelo mundo.
Surpreso pelo comentário, Lauro abraçou o velho e ganhou o cumprimento de seu padrinho. Foram juntos dar a notícia para a peonada, que aguardava ansiosa no galpão.
Não é que o patrão preparou este assado todo pra colocar um freio no Lauro? Mas que barbaridade! — Euleutério troçava aos risos, já estava mais do que passado no trago.
Aparício da Silva Bueno foi quem deu a notícia para a mulata Pitanga. Já Lauro Contreras, resignado, comemorou noite adentro. Assim, nasceu o Posto das Lebres.

R. Tavares, in Andarilhos

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