sábado, 19 de dezembro de 2020

Dos sublimes

            Calmo é o fundo de meu mar: quem diria que oculta monstros brincalhões?
Inabalável é minha profundeza: mas cintila de enigmas e risadas que flutuam.
Um homem sublime avistei hoje, um solene, um penitente do espírito: oh, como riu minha alma de sua feiura!
Com peito erguido e semelhante àqueles que seguram o ar: assim estava ele, o sublime, em silêncio:
Ornado de feias verdades, seu butim de caça, e rico em vestimentas rasgadas; muitos espinhos também havia nele — mas não vi nenhuma rosa.
Ainda não aprendeu o riso nem a beleza. Sombrio, esse caçador retornava do bosque do conhecimento.
Regressava da luta com animais selvagens: mas em sua seriedade espreita ainda um animal selvagem — um que não foi vencido!
Ali continua, como um tigre a ponto de saltar; mas não me agradam essas almas tensas, meu gosto é hostil a esses retraídos.
E me dizeis, amigos, que não se discutem gostos e sabores? Mas toda a vida é discussão sobre gostos e sabores!
Gosto: é peso e balança ao mesmo tempo, e aquele que pesa; e coitado do vivente que quisesse viver sem discussão por peso, balança e quem pesa!
Quando se cansasse de sua sublimidade, esse sublime: apenas então começaria sua beleza — e apenas então eu desejaria saboreá-lo e achá-lo saboroso.
E somente quando ele se afastar de si mesmo pulará por cima de sua própria sombra — e, em verdade, para dentro de seu sol!
Por tempo demais ele esteve na sombra, empalideceram as faces do penitente do espírito; ele quase morreu de fome em sua expectativa.
Em seus olhos ainda há desprezo; nojo se esconde em sua boca. É certo que agora repousa, mas seu repouso não se deitou ainda ao sol.
Ele deveria fazer como o touro; e sua felicidade deveria ter cheiro de terra e não de desprezo da terra.
Eu gostaria de vê-lo como um touro branco, bufando e mugindo enquanto vai à frente da relha do arado: e seu mugido deveria ainda louvar tudo que é terreno!
Escuro ainda é seu rosto; a sombra de sua mão brinca sobre ele. Ensombrecido ainda está o sentido de sua visão.
Seu próprio ato é ainda a sombra sobre ele: a mão obscurece o agente. Ele ainda não superou seu ato.
É certo que amo nele a nuca do touro: mas agora quero também ver os olhos do anjo.
Também sua vontade de herói ele tem que desaprender: um ser elevado ele tem de ser, não apenas sublime: — o próprio éter deveria elevá-lo, o sem-vontade!
Ele subjugou monstros, resolveu enigmas: mas deveria também redimir seus monstros e enigmas, em crianças celestes deveria transformá-los.
Seu conhecimento não aprendeu ainda a sorrir e não ter ciúmes; sua paixão torrencial não acalmou ainda na beleza.
Em verdade, não na saciedade deve o seu anseio calar e submergir, mas na beleza! A graça é parte da magnanimidade de uma grande alma. Com o braço sobre a testa: assim deveria o herói descansar, assim deveria ele também superar seu descanso.
Mas justamente para o herói é o belo a mais difícil de todas as coisas. Inconquistável é o belo para toda vontade impetuosa.
Um pouco mais, um pouco menos: justamente isso é aqui muito, é aqui o máximo.
Ficar com os músculos relaxados e a vontade desatrelada: eis o mais difícil para vós, ó sublimes!
Quando o poder se torna clemente e descende para o visível: chamo beleza a esta descida.
E de ninguém quero beleza tanto quanto de ti justamente, ó poderoso: que tua bondade seja tua derradeira autoconquista.
De todo o mal te julgo capaz: por isso quero de ti o bem.
Em verdade, muitas vezes ri dos fracotes que se creem bons porque têm patas aleijadas!
Deves aspirar à virtude da coluna: quanto mais ela sobe, fica tanto mais bela e delicada, mas interiormente mais dura e resistente.
Sim, ó sublime, um dia ainda serás belo e segurarás o espelho para tua própria beleza.
Então tua alma tremerá de divinos desejos; 75 e ainda em tua vaidade haverá adoração!
Pois este é o segredo da alma: apenas o herói a abandonou, aproxima-se dela, em sonhos — o super-herói.
Assim falou Zaratustra.

Friedrich Nietzsche, in Assim falou Zaratustra

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