sábado, 12 de dezembro de 2020

Adeus, vou-me embora!

          Não posso infelizmente responder cartas de leitores, só uma vez ou outra. Mas houve uma que misturava agressividade com palavras delicadas, tinha a chamada rude franqueza. Porque em uma de minhas colunas eu disse que preferiria ser antipática, ele diz: “Não vou cometer a leviandade de dizer que a acho simpática, cheia de altos e baixos, mas sou bastante vulgar para considerá-la linda.”
Diz que me conheceu, mas tenho péssima memória e nem sequer consigo visualizar uma pessoa com esse nome. Diz: “Algumas coisas a tornam uma digna compatriota de Tchekhov. Outras a identificam com os daqui mesmo. Não de Cruz Alta ou Montes Claros, mas de Bagé ou Cascadura.” Meu filho, eu não me incomodo a mínima em ser Bagé ou Cascadura. E eu escrevo para quem quiser me ler. Você, Francisco, reclama demais, às vezes com razão, às vezes não. Não fico nem por um instante irritada: eu mesma me criei uma vida onde eu posso dizer tudo e ouvir tudo. Mas na sua carta fico sem saber vários trechos se sou a ofendida ou a elogiada.
Você reclama contra o meu desalento. Tem razão, Francisco, sou um pouco desalentada, preciso demais dos outros para me animar. Meu desalento é igual ao que sentem milhares de pessoas. Basta, porém, receber um telefonema ou lidar com alguém que eu gosto e minha esperança renasce, e fico forte de novo. Você na certa deve me ter conhecido num momento em que eu estava cheia de esperança.
Sabe como eu sei? Porque você diz que sou linda. Ora, não sou linda. Mas quando estou cheia de esperança, então de minha pessoa se irradia algo que talvez se possa chamar de beleza.
Com toda razão você quer que, como Tchekhov, eu escreva coisas engraçadas. Meu caro amigo, se escrevesse uma só página como Tchekhov, eu seria uma grande mulher e não a desprotegida que sou. Não se incomode, Francisco, que minha hora de dizer coisas engraçadas vai chegar, sou mesmo de altos e baixos e aproveitarei um dia desses a forte onda do mar para andar na sua crista. A hora de rir há de chegar, Francisco. Já estou até impaciente por esta hora, o que é bom sinal: significa que a hora da esperança renovar-se, dentro de tantas cinzas, está perto. Por enquanto o meu jeito tem sido o de rir ou chorar, segundo meus altos e baixos.
Francisco, você me oferece seu “reino, um cavalo e um prato de lentilhas”. Considero-me a mais humilde serva de seu reino. Aceito também voar no seu cavalo no escuro porque, Francisco, é no escuro que você me deixou, você ainda não me ofereceu nenhuma pista para eu desabrochar na luz, e é disso que estou precisando. Mas você é bom e, mesmo decepcionado com minha pouca possibilidade atual de riso, me oferece essa iguaria sem par: um prato de lentilhas. Enfim alguém compreendeu que estou com fome.
Depois você me propôs uma coisa tão excepcional que me senti excepcional também. Se eu não aceitar é porque não posso mesmo. Pois você, com a simplicidade de quem tem riqueza dentro de si, me oferece o seguinte:
Fujamos para Hong Kong ou para qualquer lugar com pouco aquém do além.”
E, como você diz, “que Deus nos proteja para todo o sempre”.
Amém, Francisco, e obrigada: quero tudo o que você tem a me dar. Há muito tempo não me dão um prato de lentilhas para esta fome arcaica que eu tenho. Com seu cavalo, Francisco, iremos tão longe! E de lá nunca voltaremos. Adeus, todo o mundo! pois já estou montada no cavalo belo que me levará à luz. Vou-me embora para a minha Pasárgada, enfim!
As outras cartas, desta última safra, são de gente muito pura e cheia de confiança em mim. Não sei selecionar as que mais me comoveram. Todas esquentaram meu coração, todas quiseram me dar a mão para me ajudar a subir mais e ver de algum modo a grande paisagem do mundo, todas me fizeram muito bem. Sou uma colunista feliz. Escrevi nove livros que fizeram muitas pessoas me amar de longe. Mas ser cronista tem um mistério que não entendo: é que os cronistas, pelo menos os do Rio, são muito amados. E escrever a espécie de crônica aos sábados tem me trazido mais amor ainda. Sinto-me tão perto de quem me lê. E feliz por escrever para os jornais que me infundem respeito. Só me ocorre o nome de três ou quatro cronistas mulheres: Elsie Lessa, Rachel de Queiroz, Dinah Silveira de Queiroz, eu. Vou telefonar para Elsie, que faz crônica há mais tempo do que eu, para lhe perguntar que faço dos telefonemas maravilhosos que recebo, das rosas pungentes de tanta beleza que me oferecem, das cartas simples e profundas que me mandam.
Prometo aos meus leitores que serei mais feliz e assim eu os farei, pelo menos por um instante, mais felizes. Mas, Deus meu, como é que se é feliz? Pois não aguento mais a solidão neste mundo de Carlos Drummond de Andrade. Viva muito tempo, Drummond, para que eu possa lhe telefonar como faço uma vez ou outra, sempre com objetivo certo, senão não teria a coragem de interromper você no seu trabalho. Mas hoje tive a coragem de ser tão linda de esperança como você me viu, Francisco. E falei pelo telefone com Drummond, quase chamando-o de Carlinhos, pois é essencial não esquecer que, com sua imensa grandeza, ele é Carlinhos também e sua mãe assim o chamava. Ele também precisa ser mimado. Vou parar aqui, pois estou cavalgando depressa demais no cavalo de Francisco e se não tomar cuidado hoje mesmo começa o primeiro capítulo de mais um filho: um romance. O ruim é que dou com antecedência razoável minhas crônicas, e estas saem publicadas num sábado de madrugada, como um pão quente saindo do forno, talvez o céu tenha nuvens vermelhas, a lua esteja fininha e eu já terei também outra leva de sentimentos, nos meus fatais altos e baixos.
Sim, Otávio Bonfim, escrever para um jornal é uma grande experiência que agora renovo, e ser jornalista, como fui e como sou hoje, é uma grande profissão. O contato com o outro ser através da palavra escrita é uma glória. Se me fosse tirada a palavra pela qual tanto luto, eu teria que dançar ou pintar. Alguma forma de comunicação com o mundo eu daria um jeito de ter. E escrever é um divinizador do ser humano.
Como? Mas como é que eu escrevi nove livros e em nenhum deles eu vos disse: Eu vos amo? Eu amo quem tem paciência de esperar por mim e pela minha voz que sai através da palavra escrita. Sinto-me de repente tão responsável. Porque se sempre eu soube usar a palavra – embora às vezes gaguejando – então sou uma criminosa se não disser, mesmo de um modo sem jeito, o que quereis ouvir de mim. O que será que querem ouvir de mim? Tenho o instrumento na mão e não sei tocá-lo, eis a questão. Que nunca será resolvida. Por falta de coragem? Devo por contenção ao meu amor, devo fingir que não sinto o que sinto: amor pelos outros?
Para salvar esta madrugada de lua cheia eu vos digo: eu vos amo.
Não dou pão a ninguém, só sei dar umas palavras. E dói ser tão pobre. Estava no meio da noite sentada na sala de minha casa, fui ao terraço e vi a lua cheia – sou muito mais lunar que solar. E uma solidão tão maior que o ser humano pode suportar, esta solidão me toma se eu não escrever: eu vos amo. Como explicar que me sinto mãe do mundo? Mas dizer “eu vos amo” é quase mais do que posso suportar! Dói. Dói muito ter um amor impotente. Continuo porém a esperar.

Clarice Lispector, in Todas as crônicas

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