1.
Quanto a mim, chegou o momento de dizer a
que vim. Evidentemente, não sou um ser humano. Isso hoje ninguém
mais é. Eu sou o espírito do mundo hegeliano. Eu sou Deus.
Eu sou o pleroma.
Não somos mais indivíduos se não
fazemos mais nada. O indivíduo é uma personalidade em ação.
Um indivíduo é por definição algo limitado. Se todos estão em
toda a parte e tudo sabem — então tudo é um só.
A história atingiu seu objetivo. O ciclo
foi interrompido. Todos os rios desaguaram num grande oceano.
Tudo isso se passou há vários milênios.
Agora, com certeza, já faz dez ou vinte mil anos que o scanner do
tempo foi construído. Mas isso na verdade não tem nenhuma
importância. Eu parei de contar os anos. Mas cruzei a história do
mundo em todas as direções.
2.
Ser onisciente proporciona uma
indescritível paz de espírito. A única coisa com que tenho que me
preocupar em minha onisciência e onipresença é a solidão.
Estar em toda a parte leva à solidão.
Não tenho ninguém com quem possa dividir minha onisciência. Não
tenho a quem ensinar. Pois todos sabem tudo. Todos são idênticos a
mim. Isto é, eu som todos.
O outro não existe, não existe
uma incerteza lúdica, à qual eu pudesse acrescentar uma nesga de
mim mesmo, na esperança de alguma espécie de confirmação da minha
existência.
3.
Estou com dor de cabeça. Acho que estou
dormindo. De qualquer forma, não escrevi nada disso. Talvez eu tenha
sonhado. Mas acho que vi isso na tela. Ou fui visto.
Não sei se estou sonhando ou se eu mesmo
sou o sonho. Não posso garantir que esteja vivo. Mas estou bastante
certo de que vivi. Bem, na verdade, isso também já não tem
muita importância.
Para que se deveria, em meio a grande
ausência de limites, colocar a todo custo um limite qualquer?
Jostein Gaarder, in O pássaro raro
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