quarta-feira, 4 de novembro de 2020

O espírito absoluto

          1.

Quanto a mim, chegou o momento de dizer a que vim. Evidentemente, não sou um ser humano. Isso hoje ninguém mais é. Eu sou o espírito do mundo hegeliano. Eu sou Deus. Eu sou o pleroma.
Não somos mais indivíduos se não fazemos mais nada. O indivíduo é uma personalidade em ação. Um indivíduo é por definição algo limitado. Se todos estão em toda a parte e tudo sabem — então tudo é um só.
A história atingiu seu objetivo. O ciclo foi interrompido. Todos os rios desaguaram num grande oceano.
Tudo isso se passou há vários milênios. Agora, com certeza, já faz dez ou vinte mil anos que o scanner do tempo foi construído. Mas isso na verdade não tem nenhuma importância. Eu parei de contar os anos. Mas cruzei a história do mundo em todas as direções.

2.

Ser onisciente proporciona uma indescritível paz de espírito. A única coisa com que tenho que me preocupar em minha onisciência e onipresença é a solidão.
Estar em toda a parte leva à solidão. Não tenho ninguém com quem possa dividir minha onisciência. Não tenho a quem ensinar. Pois todos sabem tudo. Todos são idênticos a mim. Isto é, eu som todos.
O outro não existe, não existe uma incerteza lúdica, à qual eu pudesse acrescentar uma nesga de mim mesmo, na esperança de alguma espécie de confirmação da minha existência.

3.

Estou com dor de cabeça. Acho que estou dormindo. De qualquer forma, não escrevi nada disso. Talvez eu tenha sonhado. Mas acho que vi isso na tela. Ou fui visto.
Não sei se estou sonhando ou se eu mesmo sou o sonho. Não posso garantir que esteja vivo. Mas estou bastante certo de que vivi. Bem, na verdade, isso também já não tem muita importância.
Para que se deveria, em meio a grande ausência de limites, colocar a todo custo um limite qualquer?

Jostein Gaarder, in O pássaro raro

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