segunda-feira, 16 de novembro de 2020

Nós

Já vivi muitas vidas neste corpo.
Vivi muitas vidas antes de me colocarem neste corpo.
Viverei muitas vidas depois de me tirarem dele.

Na primeira vez que nossa mãe veio, nós gritamos.
Éramos três e ela era uma cobra, enrolada no piso frio do banheiro, esperando. Mas tínhamos passado os últimos anos acreditando em nosso corpo – pensando que nossa mãe era outra, uma humana magra com bochechas coradas e grandes óculos com lentes fundo de garrafa. Então, gritamos. As demarcações não são tão claras quando você é novo. Houve um tempo antes de termos nosso corpo, quando ele ainda estava se formando célula por célula dentro da humana magra, produzindo órgãos meticulosamente, fazendo sistemas. Costumávamos entrar e sair para ver como o feto estava, cortando pela água em que flutuava e harmonizando com as canções que a mulher magra cantava, hinos católicos de sua família, as cinzas de seus corpos armazenadas nas paredes de uma catedral em Kuala Lumpur. Nos divertíamos distorcendo o ritmo da música, enrolando-a ao redor do feto até que ele chutasse, feliz. Às vezes, saíamos do corpo da mulher magra para flutuar atrás dela e explorar a casa de que ela cuidava, seguindo-a por entre as paredes azuis, assistindo-a moldando a massa e chapatis borbulhando sob suas mãos.
Ela era pequena, com olhos e cabelos escuros, pele marrom-clara, e seu nome era Saachi. Nascera a sexta de oito filhos, no décimo primeiro dia do sexto mês, em Malaca, no outro lado do Oceano Índico. Mais tarde, foi para Londres e se casou com um homem chamado Saul em uma rajada de sari, véu e flores brancas. Ele era um homem forte, com um sorriso torto, pele de um marrom-escuro profundo, e cachos pretos cortados rente ao couro cabeludo. Ele cantava Jim Reeves em um barítono exagerado, falava russo fluentemente e sabia latim, e dançava valsa. Havia doze anos entre eles, mas, mesmo assim, o casal era lindo, combinavam bem, movendo-se pela cidade cinza com elegância.
Enquanto nosso corpo estava incrustado nas paredes dela, eles se mudaram para a Nigéria, e Saul estava trabalhando no Hospital Queen Elizabeth em Umuahia. Eles já tinham um menino, Chima, que havia nascido em Aba três anos antes, mas para este bebê (para nós), era importante que eles retornassem a Umuahia, onde Saul tinha nascido, e seu pai, e o dele antes disso. O sangue seguindo caminhos no solo, lubrificando os portões, transformando a reza em carne. Depois haveria outra menina, nascida em Aba, e Saul cantaria para as duas meninas em seu barítono, as ensinaria a valsar, e cuidaria de seus gatos quando elas o deixassem.
Mas antes de as meninas nascerem, eles (a mulher magra e o homem forte) viviam em uma casa grande no bairro dos médicos, o lugar com o hibisco na parte de fora e o azul por dentro. Saachi era enfermeira, uma mulher pragmática, então, contando com os dois, havia boas chances de o bebê sobreviver. Quando nos cansávamos da casa, voejávamos e mergulhávamos, brincando no condomínio e observando os ramos das batatas subindo pelas varas, a seda do milho secando com o amadurecimento, as mangas inchando e ficando amareladas antes de cair. Saachi sentava e assistia a Saul encher dois baldes com aquelas mangas e trazê-las até ela. Ela as comia desde a casca até a carne úmida até os dentes rasparem a semente como osso seco. Depois fazia geleia de manga, suco de manga, tudo de manga. Comia dez a vinte por dia, e alguns abacates grandes, cortando-os na altura do caroço e retirando o interior amanteigado, que lhe descia pela garganta. E assim nosso corpo-feto era alimentado e o visitávamos, e quando nos cansávamos do mundo deles, íamos para o nosso. Naquele tempo, ainda éramos livres. Era simples escapar, seguindo os fluxos amargos do giz.
Naqueles dias do Queen Elizabeth, o motorista de táxi era um homem que estampava o interior do carro com o slogan NÃO HÁ ATALHOS PARA O SUCESSO. As mesmas palavras, engrossando conforme os adesivos eram empilhados um em cima do outro, alguns já descascando, outros ainda brilhando. Todos os dias, Saachi deixava o filho pequeno, Chima, em casa com a babá, e o taxista a levava do condomínio até a clínica de Saul, no interior da aldeia. Naquela manhã (o dia em que morremos e nascemos), o parto começou enquanto eles dirigiam por estradas sinuosas avermelhadas. O motorista deu meia-volta, seguindo ordens arfantes, e a levou para o Hospital Aloma. Enquanto o corpo dela nos chamava e se retorcia, Saachi só conseguia pensar naqueles adesivos, aglomerados ao redor dos assentos, lembrando-a de que não existiam atalhos.
Enquanto isso, éramos puxados, arrastados pelos portões, pelo rio, e pela porta dos fundos do útero da mulher magra, empurrados para dentro da água ondulante e do pequeno corpo que flutuava nela. Estava na hora. Enquanto o feto estava abrigado, tínhamos nossa liberdade, mas agora ele ficaria sozinho, não mais carne dentro de um abrigo, mas um abrigo em si, e nós estávamos destinados a viver ali. Estávamos acostumados aos baques quentes de dois batimentos cardíacos separados por paredes de carne e líquido, acostumados à possibilidade de ir embora, de voltar ao lugar de onde viemos, livres como espíritos devem ser. Sermos isolados e trancados na consciência turva de uma mente pequena? Nos recusamos. Seria loucura.
O corpo da mulher magra tinha tendência a partos rápidos. O menino, o primeiro filho, havia nascido em uma hora, e um ano depois de nascermos, a terceira criança levaria apenas duas horas. Nós, o meio, seguramos o corpo contra o puxo por seis. Sem atalhos.
Era o sexto dia do sexto mês.
No final, os médicos introduziram uma agulha em Saachi, medicando-a intravenosamente, revidando nossa resistência com remédios, expulsando o corpo que estava se tornando nosso. Então fomos aprisionados por este nascimento estranho, esta abominação dos feitos-de-carne, e foi assim que acabamos aqui.

Akwaeke Emezi, in Água doce

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