quinta-feira, 5 de novembro de 2020

Mystique

          O homem que sabia o que eu estava prestes a dizer sentou-se ao meu lado no avião, e deu um sorriso idiota. Isso é o que era mais enlouquecedor nele, o fato de que não era inteligente ou sensível, e ainda assim conseguia dizer todas as coisas que eu queria dizer, três segundos antes de mim. “Vocês têm Mystique de Guerlain?”, perguntou para a aeromoça um instante antes que eu conseguisse, e ela lhe deu um sorriso ortodôntico e disse que havia restado apenas um frasco. “Minha mulher é louca por esse perfume. É como um vício para ela. Se eu voltar de uma viagem sem um frasco de Mystique do duty-free, ela me diz que eu já não a amo mais. Se me atrevo a entrar pela porta, sem pelo menos um destes, fico em apuros.” Essa devia ser a minha fala, mas o homem que sabia o que eu estava prestes a dizer a roubou de mim sem sequer piscar. Assim que as rodas do avião tocaram na pista, ele ligou o celular, um segundo antes de mim, e chamou a esposa. “Acabei de pousar”, ele disse a ela. “Lamento. Sei que era para ter sido ontem. O voo foi cancelado. Você não acredita em mim? Confira você mesma. Ligue para o Eric. Eu sei que você não tem. Posso lhe dar o número dele agora.” Eu também tenho um agente de viagens chamado Eric. Ele mentiria por mim também.
Quando o avião chegou ao portão, ele ainda estava ao telefone, dando todas as respostas que eu teria dado. Sem um traço de emoção, como um papagaio em um mundo onde o tempo flui para trás, repetindo o que está prestes a ser dito em vez do que já foi dito. Suas respostas foram as melhores possíveis, dada a situação. Sua situação não era das melhores, não era mesmo. A minha também não. Minha mulher ainda não tinha recebido minha ligação, mas só de ouvir o homem que sabia o que eu estava prestes a dizer me fez perder a vontade. Só de ouvi-lo eu podia entender que o buraco em que eu estava era tão fundo que, mesmo se eu conseguisse escavar o caminho para sair, seria para uma realidade diferente. Ela nunca iria me perdoar, nunca iria confiar em mim. Jamais. Todas as viagens futuras seriam o inferno na terra, e o tempo entre elas seria ainda pior. Ele continuou a falar e a falar e a falar todas aquelas frases que eu tinha pensado e ainda não tinha dito. Este fluxo não cessava. Ele aumentou a rapidez, mudou a entonação, como um náufrago desesperado para conseguir se manter à tona. As pessoas já tinham começado a descer. Ele se levantou do assento, ainda falando, pegou a pasta com o laptop na outra mão, e começou a se dirigir para a saída. Eu pude ver como ele a deixou para trás, a sacola que tinha colocado no compartimento superior de bagagem. Pude ver como ele a esqueceu, e eu não disse nada. Continuei sentado. Aos poucos, o avião foi se esvaziando. No fim, sobramos eu e uma mulher religiosa gorda com um milhão de filhos. Levantei-me e abri o compartimento de bagagem, como se fosse a coisa mais natural do mundo. Peguei a sacola do duty-free, como se sempre tivesse sido minha. Dentro da sacola de plástico transparente, a nota fiscal e o frasco de Mystique de Guerlain. Minha esposa é louca por esse perfume. É como um vício para ela. Se eu voltar de uma viagem sem um frasco de Mystique do duty-free, ela me diz que eu já não a amo mais. Se me atrevo a entrar pela porta, sem pelo menos um destes, fico em apuros.

Etgar Keret, in De repente, uma batida na porta

Nenhum comentário:

Postar um comentário