Já se ia mais de uma semana que eles
viajavam pelo pampa, e o calor daquele meio dia se fazia
insuportável. O capataz Herculano, de idade avançada, estava com o
corpo corroído de dor – mal sentia os pés e ainda suspeitava
estar com febre. Herculano forçou as vistas em busca de uma aguada e
de uma sombra, temia não poder continuar. Já trazia as rédeas
frouxas nas mãos. “Esta será minha última tropeada, não venho
mais”, pensava.
O velho, de repente, sentiu uma dor no
peito e uma forte vertigem.
— Socor... — tentou chamar os que
estavam próximos, mas a voz não saiu de sua boca.
A luz do sol cegou-o momentaneamente, e
suas mãos cansadas da viagem permitiram que a rédea lhe escapasse.
Parecia que seus miolos queriam partir-lhe a cabeça, que latejava
compassadamente. Tentou levar a mão ao coração. A dor foi
lancinante; e a pressão, insuportável. Ele perdeu os sentidos. Na
mesma hora, o cavalo que montava pisou na rédea e, assustado,
disparou. O gado, ouriçado, fez menção de se apartar.
João Fôia viu o cavalo do capataz
disparar. Percebendo a gravidade da situação, esporeou seu zaino e,
a todo galope, tentou conter o animal que corria assustado. O velho
Herculano caiu do cavalo e foi arrastado por muitos metros, pois seus
pés ficaram presos ao estribo. Quando João conseguiu parar o
animal, já era tarde demais – o antigo capataz da Estância da
Província estava estirado no chão, sem vida.
Enquanto alguns peões controlavam o gado
para evitar a debandada, os mais próximos do morto rezaram como
sabiam e, com duas estacas de madeira e couro, improvisaram uma maca.
Armênio, sota-capataz, mesmo em choque, teve de assumir a situação,
uma vez que havia se tornado o responsável pela tropa. Destacou um
dos homens de sua confiança e recomendou que levasse o corpo do
capataz de volta para as casas.
— E vê se não te extravias no
caminho, se não hás de entregar o corpo do homem “abichado” pra
dona Joaquina. — disse, antes de soltar um longo e agudo assobio
chamando a tropa — Olha o caminho, boi...
João acompanhou a cena de longe. Não
estava triste, pois não tinha qualquer apreço pelo capataz, mas
estava assustado com sua premonição. Não gostava dessas coisas.
Ao décimo nono dia de tropeada,
reconheceram, ao longe, a grande mangueira de pedra da Charqueada
Santa Rita. Escutaram os latidos dos cachorros e puderam ver que a
peonada da estância já estava encilhada, aguardando a chegada. O
cheiro que sentiram era de podre, e moscas varejeiras zuniam em seus
ouvidos. Podiam enxergar carcaças de animais jogadas num grande
amontoado ao lado o rio de suas águas escuras e fedorentas. Sangue e
restos de dejetos eram lançados todos os dias, sem trégua, nas suas
correntezas.
Cinco cavaleiros se aproximaram para
ajudar a conduzir o gado. Com destreza, após poucos minutos,
deixaram os animais pastando no pequeno potreiro nos fundos da
propriedade.
Finalmente, os tropeiros puderam
descansar. O seu Armênio, com o semblante cansado e triste, estava a
bebericar uma guampa com canha quando foi chamado por um senhor na
entrada do galpão.
Esse senhor encarava a todos com olhar de
reprovação. Tinha os olhos profundos e sérios, largas sobrancelhas
pretas e unidas a contrastar com sua barba branca. A calvície era
escondida por um elegante chapéu de feltro. Armênio acompanhou-o
numa caminhada e foi mostrando-lhe o gado, explicando os acontecidos
do trajeto. O velho balançava a cabeça e parecia concordar com o
que o peão dizia. Aos poucos, sumiram das vistas de João Fôia.
— Quem é aquele senhor? — indagou
João pra um peão da charqueada.
— Aquele é o Cel. Mariano da Cunha
Guerra. Dono aqui da Santa Rita, da Bela Vista e de muitas outras
terras — respondeu o outro, orgulhoso.
— Parece ser um homem poderoso...
— Por estas bandas, moço, o que o Cel.
Mariano diz... é lei!
Naquela noite, pernoitaram no galpão da
charqueada e, antes do amanhecer, os tropeiros retornaram para a
Estância da Província. Foram todos, exceto João Fôia, que recebeu
seu soldo e deu por cumprido o seu contrato com aqueles homens.
Ficaria pelos arredores, pois sabia que gente como o Cel. Mariano
Guerra costumava precisar de homens como ele. Fazia questão de estar
por perto quando isso acontecia.
Depois de se despedir dos peões da
charqueada e oferecer seus préstimos ao coronel, apertou bem o
barbicacho, desabou ainda mais o chapéu e seguiu no rumo que eles
indicaram. Escutava, ao longe, os latidos dos cachorros e o barulho
dos homens trabalhando.
— Êra boi... Êra boi…
R. Tavares, in Andarilhos
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