quinta-feira, 8 de outubro de 2020

Pedro Guarany, domador

 


Pedro Guarany acordou de sobressalto. Parecia ter escutado algo. Mas o silêncio reinava absoluto. Devo estar sonhando, ele pensou. Alisou os braços, procurando se aquecer um pouco. Espreguiçou-se, prestando atenção para escutar todos os estalos de seu corpo. Sentiu na boca o gosto amargo da noite. Soltou um pigarro da garganta e coçou a barba cerrada, de bigode levemente avermelhado pela nicotina.

A noite fora agradável, mas sempre fazia aquele friozinho conhecido quando estava amanhecendo nos campos do Continente. Se o gaúcho não estava prevenido, a friagem até lhe era capaz de fazer mal. Mais uma vez, abraçou os próprios braços na tentativa de fazer com que o calor lhe brotasse do corpo.

Pássaros cantavam enquanto a barra do horizonte vinha dando luz ao dia, revelando os contornos do local. Sob a copa da velha figueira, estavam espalhados alguns de seus parcos pertences: os arreios surrados, que também eram a sua cama; o velho poncho; o mate; a mala de garupa com suas roupas; as botas feitas do garrão de um potro; suas esporas nazarenas de ferro preto. Pegou do chão o seu chapéu de aba curta, desbotado de tanto sol, e colocou-o sobre a vasta cabeleira negra e despenteada. Escutou novamente o barulho: um assobio agudo e triste

Numa estância nos arredores, um cozinheiro negro tocava a vaca para a mangueira. Tomou o cuidado de trancar o terneiro na pequena encerra e, em seguida, passou a encher o balde com o leite quente, que espumava no contato com o metal. O homem que cumpria esse ritual todos os dias ainda ficava com os olhos marejados ao sentir aquele cheiro adocicado e morno. Observou o vapor que subia do recipiente. Era o milagre da vida, filosofava.

Tateou o chão e pegou sua caneca alouçada. O apojo era dele, aquele copo da bebida quente e gorda. Com o bigode branco de leite, o negro estalou os lábios, levantou-se e sorriu. Em seguida, agarrou o balde e caminhou, arrastando suas alpargatas, para a cozinha. Assobiava uma milonga muito antiga, restos de um baile que não conseguia espantar da cabeça.

Devido às planícies e ao minuano que soprava, a música assobiada chegou, entrecortada, aos ouvidos de Pedro Guarany. Instintivamente, o gaúcho passou a acompanhar a melodia, já nem sabendo dizer se fora ele quem começara ou o outro.

Pedro juntou alguns pedaços de graveto e começou a reacender o fogo da noite anterior. Caminhou alguns metros para buscar água na sanga rasa que cortava aqueles campos. Olhou para o Penacho, que pastava por ali. Soltou um “buenos dias” para o parceiro. O bragado, com manchas que lembravam um velho mapa, trocou orelhas, abaixou a cabeça e aproximou-se do homem. Estava solto e, agora, caminhava lentamente ao lado de Guarany.

Água esquentando na cambona, um naco de carne salgada e uma ou duas galletas. Não há desayuno melhor, não é, Penacho?

Pedro perguntou e ficou a observar seu cavalo. Acariciou a tábua do pescoço, desemaranhou as cerdas. Sempre ficava meio nostálgico quando aprontava uma tropilha. Ontem mesmo entregara a cavalhada que estava domando. Nos dias seguintes, ficava com aquele aperto no peito.

Aprendera o ofício com seu pai. Domava apenas no entardecer e no amanhecer, quando havia menos distrações para o cavalo e para ele mesmo. A doma não era uma ciência exata. Cada cavalo tinha seu jeito, seu temperamento. Pedro Guarany tinha o sangue índio correndo em suas veias. Não concordava com aquela doma violenta feita normalmente pelos gaúchos. Utilizava métodos herdados de seus antepassados tribais. Respeitava o cavalo – sabia o perigo da rodada, por supuesto!

Aos poucos, aproximava-se. O animal, com medo, normalmente corria. Mas, usando de paciência, o homem mostrava que não era inimigo. Depois que o homem trabalhava sobre o medo do potro, conquistando sua confiança, tornava-se necessário tirar as cócegas.

Por serem muito sensíveis, os cavalos podiam se tornar perigosos, e a doma devia ser feita com muita atenção. O domador deveria conhecer todos os atalhos. Primeiro, trabalhava-se a cabeça; depois, o pescoço, paleta, barriga, e, por último, a virilha. Aos poucos, o animal não temia mais o contato.

Era um ofício dificultoso e demorado, mas, depois que o cavalo criava o vínculo com o homem, bastava ensinar-lhe os movimentos que ele próprio iria fazer, indicando-lhe o resultado esperado – pois uma coisa era certa: andar, trotear, galopear e tudo mais o cavalo já nascia sabendo, o milagre era fazer com que essa comunicação entre homem e o animal se tornasse possível.

A maioria ainda confiava mais na doma tradicional, em que o homem vencia o cavalo pela repetição, pelo medo e pela violência. Guarany nem acreditava que um dia seria o contrário. Apesar disso, confiava mais no seu método índio.

Dias antes, quando entregara a cavalhada para Dom Guillermo, sentira um pouco desse preconceito. Avistara de longe o dono da estância, um senhor retaco, olhos secos e nariz atrevido enfeitado por um bigode ainda negro, chegando acompanhado por uma comitiva no seu acampamento – havia pedido um lugar reservado para fazer seu serviço.

Buenos dias, Pedro. E esta doma sai ou não sai?

Buenas. Mas claro que sai, seu Guillermo. Na verdade, estou somente dependendo da aprovação do senhor.

Que bueno, entonces! Já não era sem tempo! — respondeu ele, troçando, comentário seguido por risos de seus dois filhos e da peonada que duvidava do método do índio.

Pedro Guarany não se abalou. Era sereno, não se exaltava demais nas felicitações, mas também não fazia muito caso nas críticas. Pediu permiso ao homem e buscou um buçal e os arreios.

O velho estancieiro, seus guris e a peonada aguardavam ansiosos. Não acreditavam que os cavalos estivessem mansos. Tinham passado por ali várias vezes durante os dias em que a doma durara e, praticamente, nunca viam o gaúcho lidando com a cavalhada. Provocavam Dom Guillermo dizendo que o Guarany estava era vivendo uma vida boa de comida e descanso às expensas do homem.

Guarany voltou com o primeiro cavalo embuçalado. O animal caminhava tranquilo ao lado do domador, por vezes cheirando o seu ombro. Pedro soltou o cabresto no chão e, com um saco de estopa, fez menção de assustar o bicho. Passou o pano na cabeça, nas axilas, no pescoço e na virilha. Os homens olhavam atentos. O cavalo estava impassível.

Sem reparar na plateia, Pedro começou a passar por entre as patas do cavalo, montava pelos dois lados, pegava todas as patas com a mão. Buscou o freio, encilhou o animal. Fez todas as demonstrações que se esperava. Como ainda não houvesse resposta, repetiu o espetáculo com os oito cavalos que estava responsável por domar.

Por fim, pediu que Dom Guillermo escolhesse um dos cavalos para uma demonstração especial. O mouro, disse o velho. Guarany aproximou-se do animal, acariciou-lhe a fronte e caminhou em direção à plateia improvisada. Pedro disse alguma coisa que não puderam ouvir e fez um sinal com as mãos, algo parecido com uma reverência e, imediatamente, o cavalo foi se abaixando e acabou deitando-se no chão, ficando imóvel.

Dom Guillermo sorria em cima dos seus arreios. Estava visivelmente emocionado. Apeou do cavalo e cumprimentou o outro, que não mudou sua expressão. Boquiaberta e contrariada, a peonada olhava a demonstração da doma.

Parabéns, guri. Nunca vi coisa mais linda... E essa cavalhada faz isso com qualquer um que montar? — perguntou com o olho fixado no cavalo que continuava deitado.

Quer que eu pegue um pra o senhor experimentar?

Por hora não, gaúcho. Estou bastante satisfeito. — O homem gostou da demonstração, mas mantinha seus receios de como a cavalhada iria se portar na lida.

Pode passar lá em casa mais tarde, Pedro, para receber teu pagamento e levar a cavalhada lá pra mangueira. Pra mim, o serviço está terminado! –— disse o velho antes de montar de novo e voltar para sua casa. Pedro assentiu, virou-se e saiu no rumo de seus pertences, acompanhado pelo mouro.

Ele é bruxo!

Tem parte com o demônio!

Deus me livre!

A conversa da peonada foi até altas horas. Tinham certeza de que o domador não era deste mundo.

Como de costume, naquele dia Pedro Guarany estava mais sentimental, pois acabara de entregar a tropilha recém domada. Passava tanto tempo com aqueles animais que os estranhava e parecia perdido quando retornava às suas andanças.

Olhou ternamente para o seu cavalo, o primeiro que domara.

Meu bragado... Há quanto tempo estradeamos juntos, parceiro? — Alisou mais uma vez o seu amigo. Penacho era um cavalo de lei, entendia os gestos do dono. Conhecia todos os atalhos daquelas paragens. Quando Pedro não sabia exatamente para onde seguir, deixava que ele conduzisse a marcha.

Com a mira estendida a lejos de distância, Pedro picava automaticamente o fumo e pensava qual caminho deveria seguir. O sol já havia dado as caras, e o frio madrugueiro já tinha se despedido. Pequenas gotas de suor começavam a manchar sua camisa.

Acendeu o pito, para clarear o pensamento e tentar decidir o caminho a tomar. Essa era, basicamente, a vida de Pedro: montar no cavalo e cortar o continente em busca de changas – pequenos serviços ocasionais. Ainda bem que pelo sul ainda se prezava o andejo. Aonde chegava, era recebido e lhe garantiam o pouso e a comida. Quando não havia serviço para ser feito, antes mesmo do sol nascer, Pedro já estava na estrada novamente.

Preferia a doma, mas não fazia pouco caso das esquilas das ovelhas, das diárias ou das reformas. Era também um excelente guasqueiro, fazia cordas, arreios e tudo o mais com capricho bárbaro e tranças firmes.

Pelas estradas, conhecia todos os tipos de gente que habitavam aquelas bandas. E havia de todo tipo, costumava dizer. Descendentes de açorianos, italianos e outras raças que buscaram guarida por lá. Os fronteiriços, de modos exagerados, que costumavam falar gritando, adoravam uma farra — tinha alguns medio calaveras, é verdade. E como não falar dos missioneiros? Gaúchos de respeito, sérios, sisudos e desconfiados. Mas gente muito trabalhadeira. Pedro nutria certa simpatia por eles, pois também não era afeito a muitos sorrisos e intimidades.

Ouvira falar que nos campos do seu Hervalino estavam precisando de alguns homens para trabalhar de peão por dia, talvez pra doma, mas não tinha certeza. Já pras bandas da Serrilhada, parecia que o seu Afonso estava necessitado de um ou dois peões pra ajudar no Posto das Cruzeiras — pois o Adão, posteiro, estava meio adoentado. Pedro Guarany deu uma última tragada no palheiro e jogou o resto no chão.

Pedro firmou a faixa em volta da cintura, apertou a guaiaca de couro, de próprio feitio, e coçou o queixo, mais por cacoete do que por qualquer outra coisa. Colocou o freio e os arreios no cavalo. Ajeitou a manta de charque sob os pelegos, atou a mala de garupa com seus pertences em um tento de couro e montou no seu bragado. Olhou agradecido para a árvore que o abrigara durante a noite.

Gracias — disse. — Vamos tomar rumo, então, Penacho!

Pedro Guarany partiu sem destino certo. Confiava nos instintos de seu cavalo.

R. Tavares, in Andarilhos

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