sexta-feira, 9 de outubro de 2020

O romance de formação

 “Amar a si próprio”, disse um escritor, não sei mais qual, mas certamente foi um autor espirituoso, “amar a si próprio é sempre o início de uma vida romanesca.” O amor a si próprio, pode-se acrescentar, é também o começo de toda autobiografia. Pois o impulso de uma pessoa de fixar a sua vida, apresentar o seu desenvolvimento, festejar literariamente o seu destino e requerer com paixão o interesse do mundo que a cerca e da posteridade tem como pressuposto a mesma vivacidade incomum da sensação de “eu” que, segundo aquele escritor, é capaz não apenas de inscrever uma trajetória subjetivamente como romance, mas também de elevá-la objetivamente à dimensão do interessante e relevante. Trata-se de algo muito mais forte, profundo e produtivo do que o “amor-próprio”. Nos casos mais belos, é a grata e respeitosa plenitude de si mesmos dos eleitos dos deuses, tal como emana dos versos seguintes com uma ênfase incomparavelmente intensa:


Alles geben die Götter, die unendlichen,
Ihren Lieblingen ganz:
Alle Freuden, die unendlichen, 
Alle Schmerzen, die unendlichen, ganz. 1

É o interesse ingênuo e aristocrático pelo mistério da alta preferência, da elegância substancial, da distinção perigosa, dos méritos inatos, cujos portadores eles sentem ser; o desejo de dar a conhecer – a partir da experiência mais secreta – como um gênio se forma, como felicidade e mérito se encadeiam insoluvelmente após uma decisão qualquer da providência. Foi o que levou a Poesia e verdade, de Goethe, e é propriamente o espírito da grande autobiografia em si.

Essas frases eu escrevi há anos, quando tive de redigir algumas palavras para acompanhar o romance autobiográfico póstumo de um autor precocemente falecido no seu caminho rumo ao público leitor, e lembro-me delas no instante em que estou prestes a ler aqui alguns trechos do começo de um livro ainda inacabado, o qual se apresenta ilusoriamente como a autobiografia de um falsário, de um enganador. Um tal livro é um empreendimento insólito, nisso haverão de concordar comigo, e não devem se surpreender se eu próprio me questiono pelos motivos mais profundos desse conceito; tampouco irão interpretar como presunção se me vejo tentado a – e tento – estabelecer uma conexão com o desenvolvimento alemão, até mesmo com um determinado contexto político. É nossa época que nos ensina a pensar assim.

O romance, com sua mistura de elementos sintético-plásticos e analítico-críticos, certamente não é um gênero muito alemão. E o é menos ainda quando é político, quando contém uma crítica social. Mas existe uma espécie de romance que é alemão, tipicamente alemão, legitimamente nacional, e essa espécie é o romance de formação e de desenvolvimento impregnado de elementos autobiográficos. Imagino ainda que os senhores e eu concordamos que o predomínio desse tipo de romance na Alemanha, o fato de sua específica legitimidade nacional, está intimamente ligado ao conceito alemão de humanidade, ao qual – como é o produto de uma época em que a sociedade se decompôs em átomos e que transformou cada cidadão em um indivíduo – desde sempre faltou quase totalmente o elemento político; está, pois, ligado de modo íntimo ao individualismo alemão romântico e apolítico, aquele individualismo cultural que se tenta conciliar com o novo socialismo de Estado alemão, chamando-o de seu complemento.

Tudo estaria muito bem, se realmente fosse apenas uma questão de oposição e de conciliação entre individualismo cultural e socialismo de Estado. Mas o desenvolvimento intelectual, o progresso na direção progressista, no qual a Alemanha se encontra há algum tempo e que, com grande probabilidade, experimentará um poderoso impulso com a guerra, na realidade leva muito adiante. É um processo que exige – o que talvez não seja muito lisonjeiro para ele – um punhado de palavras artificiais duvidosas para caracterizá-lo. Trata-se da politização, da literarização, da intelectualização, da radicalização da Alemanha; é sua “humanização” no sentido ocidental-político e sua desumanização no sentido alemão; trata-se – para utilizar a expressão predileta, o grito de guerra e de entusiasmo do literato radical, cuja causa e missão é estimular esse processo – da democratização da Alemanha, termo muito sumário, que, de maneira geral, quer designar um processo em que a condição espiritual alemã tenta se assimilar à do Ocidente europeu e do Ocidente em geral. Mas a medida exata do progresso desse processo será o avanço do romance, mais precisamente do romance social e da sátira político-social no interesse público da Alemanha.

Quem se admiraria então, se do outro lado, sob a influência desse processo, a forma originalmente nacional da epopeia alemã em prosa, o romance de formação individualista, começasse a se decompor? Seria parte do processo, seria bem de acordo com o espírito do progresso. Mas qual foi, desde sempre, o meio e o instrumento da decomposição? Foi o intelecto. E qual foi a forma artística com a qual o desejo do instinto para a decomposição intelectualista sempre se vestiu, preferencialmente, necessariamente? Foi sempre a paródia. O romance alemão de formação e desenvolvimento, parodiado, exposto ao escárnio do progresso em forma de autobiografia de um impostor e ladrão de hotel – esse seria, portanto, o contexto melancólico-político em que eu teria que colocar esse livro?

Paremos por aqui! Não nos deixemos dar vazão a esse ou àquele pensamento tentador sobre a paródia de forma geral – digo, sobre até que ponto toda arte tem suas raízes na paródia, sobre a relação entre o elemento característico e o elemento parodístico e sobre como toda adequação estilística constantemente tangencia a paródia e conflui para ela. São coisas que não se adequam sem mais nem menos à leitura para um público que chegou antecipadamente a um evento literário de fim de dia. Afinal, o que importa? O que importa é que conversem hoje à noite – o que provaria que o pouco que até agora consegui concretizar do meu esboço não se limita a um curioso “desejo de instinto político” qualquer, o que não levaria a nada, mas contém vida. Começo a ler… e estou curioso se os senhores (e eu) terão a impressão de que valeria a pena um dia prosseguir e levar a cabo a obra iniciada há anos.

Thomas Mann, in Travessia marítima com Dom Quixote – Ensaios sobre homens e artistas

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1. Em tradução meramente indicativa: “Tudo os deuses, os infinitos/ dão a seus eleitos, e por inteiro:/ todas as infinitas alegrias/ todas as infinitas dores, e por inteiro.” Goethe, Alles geben die Götter, em carta de 17 de julho de 1777 à condessa Auguste zu Stolberg. (N.T.)

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