segunda-feira, 12 de outubro de 2020

O mascate Farid

          Os dias seguintes foram quentes e arrastados. O princípio de primavera já estava com sol de verão. Pedro estranhava o fato de não cruzar com viva alma desde que havia entregado a tropilha. Porém, naquela manhã, forçou os olhos oblíquos e negros e reconheceu os contornos de uma carreta conhecida, atolada no passo de um arroio. Por causa disso, sorriu seu sorriso de dentes grandes e brancos. Volta e meia, nas suas andanças, encontrava o amigo mascate. Galopou ao seu encontro:
Buenas, turco!
Turco é o senhor seu pai e a senhora sua mãe, andarilho desaforado! — respondeu Farid — Já expliquei miles de vezes que não sou turco coisa nenhuma! Sou árabe! Á-RA-BE. Só tem bicho burro que nem tu por estas bandas?
O mascate Farid deixou-se cair na risada. Sempre entrava nas provocações do outro. Sabia que era por isso que não cessavam. Pedro ria sobre seus arreios. Simpatizava com o árabe desde que o conhecera empenhado em vender trajes para um casamento. O estrangeiro tinha o dom de deixá-lo à vontade, sem a barreira que ele impunha a todos que se aproximavam. Não sabia explicar o porquê disso.
Mas vosmecê vai apear e me ajudar aqui ou vai ficar de risos como uma cozinheira aí em cima, guri mal-educado?
Pedro saltou do cavalo e foi abraçar o amigo. O velho Farid era um homem de uns cinquenta anos, mas ainda tinha a farta cabeleira conservada, recém querendo acinzentar. Ninguém sabia como havia parado no Continente, mas o certo é que aquele homem baixo, de coloração acobreada e vasta barba, era respeitado em quase todos os lugares. Quase todos, porque diziam que tinha duas ou três mulheres por aí e que, depois que elas se descobriram, foi um Deus-nos-acuda.
Mas então, Farid, deu pra desconhecer os passos que tem cruzada é? — provocou Pedro.
Eu tenho bom olho, andarilho! Mas é que deve ter chovido mais lá pra cima e a correnteza destruiu a passada. Um tipo burro que nem tu não entenderia dessas coisas — disse, aos risos. — Mas, então, vais me ajudar ou não?
Vamos ver o que dá pra fazer — respondeu Pedro, descalçando as botas e aproximando-se da carreta, com água acima das canelas. — Muy difícil... — falava baixo, espiando o mascate com o canto dos olhos.
Passou pela junta de bois que puxava o carroção, foi correndo as mãos pela cobertura de couros de vaca, pelos forros de palha das paredes, espiou a mercadoria dos negócios do mascate. A carroça estava pesada, concluiu, abarrotada de tecidos, fazendas, alguma prataria para a casa dos mais abastados, espelhos e outras bugigangas que pudessem interessar às gentes daquele fim de mundo.
Os pés descalços do andarilho procuravam nas rodas da carreta o ponto em que estavam atoladas, uma pedra que tivesse trancando o caminho ou algo do tipo. Sentia os cardumes de pequenos lambaris a beliscar sua pele.
Turco, conduz os bois ali na ponta que só uma das rodas está presa — ele disse, por fim.
Mesmo contrariado, o árabe obedeceu.
Vamos ter que esvaziar a carroça, homem. Está muito pesada. Nem tracionando com o cavalo vamos conseguir puxar.
Alheio ao aviso, Pedro continuou seus planos. Guarany estalou os dedos das mãos, agarrou a roda e fez muita força. Com o jogo do peso do próprio corpo, conseguiu levantar um pouco o carro e ordenou para o outro: “Puxa a boiada!”. O árabe tratou de puxar os animais, que deslocaram a carroça da pedra que estava atrapalhando sua condução. Farid ficou impressionado com a demonstração de força do amigo, mas nada falou, já que conhecia o seu temperamento.
Depois de resgatarem a carroça, Farid e Pedro foram conversar sob a copa das árvores. Penacho pastava solto nas proximidades.
Mas, me conta as novas, Farid. Não pode que em todo esse tempo tu só tenhas três ou quatro causos pra contar!
Pois, vosmecê sabe, menino, que está tudo calmo demais neste Rio Grande. Estou até estranhando. Se não surgir uma guerra por agora, acho que os homens terminam por enlouquecer!
Mais cedo ou mais tarde tem guerra. Disso não se há dúvida!
Pois, é o que digo. Mas eu prefiro essa paz. É bom pros negócios, sabe? As mulheres compram mais, os homens estão trabalhando e com dinheiro. Depois, vem a guerra e confiscam tudo e eu fico por aí, dormindo com um olho aberto e outro fechado, mas com minha espada ao alcance do braço! — disse rindo.
Que espada que nada, turco! — provocou. — Estás velho demais para pelear! Quando muito, te sobram forças pra sair correndo quando se aproxima algum perigo!
Guri desaforado! Te mostro quem é velho! — Farid indignou-se, pegou sua arma na carroça e saiu a correr atrás do outro. Deram boas risadas naquela tarde. Acamparam por ali mesmo, tomaram um trago de uma bebida que o andarilho não fazia ideia qual era, assaram uma carne e descansaram da jornada.
No dia seguinte, logo cedo, cada um seguiria o seu caminho. Farid disse estar levando umas encomendas para um estancieiro e disse para o outro seguir mais ao sul, pois lá teria trabalho. Um dia a trote curto e ele chegaria.
Há um bolicho numa várzea linda. Procura lá o seu Geraldo Muñoz e diz que fui eu quem te mandei lá. Ele está precisando de um homem pra serviço braçal. Mas te apura, guri, que ele mandou recado pra tudo que é lado e vai pegar o primeiro que aparecer! — disse Farid antes de se despedir e seguir caminho, puxando sua carreta com seus bois e toda sua mercadoria.
Manda um saludo praquele desgraçado! — gritou Farid já bem ao longe.

R. Tavares, in Andarilhos

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