quarta-feira, 21 de outubro de 2020

O flautista

São 20h20. Estou sozinho. O silêncio é total. Nenhum resquício de voz humana. Toca o telefone. Antes de atender, verifico o número do telefone que me chama. O código é “85”. O telefonema vem de longe, lá do norte do Brasil. Adivinho quem está me chamando. É o Marcelo, lá da cidade de Aquirás, perto de Fortaleza. Já contei a história dele noutro livro, da flauta que ele comprou com o dinheiro que conseguiu ajuntar catando moedas que encontrava no chão. Mas não era uma flauta de verdade. Era um pífaro, flauta doce de plástico. A flauta que ele queria era uma flauta transversal de concerto. “ Vai levar muito tempo pra eu ajuntar dinheiro pra comprar a flauta transversal procurando moedas no chão...”, ele disse. Voltando a Campinas, contei a história dele no jornal. Uma senhora leu, simpatizou, e ofereceu para o Marcelo uma flauta italiana que fora de seu pai. Daí pra frente, não foi possível segurá-lo. Matriculou-se no conservatório, formou-se regente e passou a dedicar-se à sua grande paixão: formar orquestras com a meninada pobre da região. Ele pediu que eu ficasse com o fone no ouvido. E o que eu ouvi foi a “Aquarela”, do Toquinho. Terminada a execução, ele explicou: “É a primeira música que essa orquestra de 85 crianças toca para um público. Nosso primeiro público é o senhor. Elas são da comunidade de Vila Pagã” – eta nome arretado! – “Uma homenagem para o senhor e para a Papirus, editora que nos deu um dinheiro de direitos autorais que usamos para comprar os flautins...”

Rubem Alves, in Do universo à jabuticaba

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