sábado, 17 de outubro de 2020

Era outubro

          O coronel destapou a caixa do café e verificou que não havia mais que uma colherinha. Tirou a panela do fogão, despejou metade da água no chão de terra, e com uma faca raspou o interior da caixa para dentro da panela até se soltarem as últimas raspas de pó de café misturadas com ferrugem da lata.
Ao esperar que fervesse a infusão, sentado junto do fogareiro de barro numa atitude de confiada e inocente expectativa, o coronel teve a sensação de que lhe nasciam fungos e lírios venenosos nas tripas. Era Outubro. Uma manhã difícil de suportar, mesmo para um homem como ele que já sobrevivera a tantas manhãs como esta. Durante cinquenta e seis anos – desde que terminou a última guerra civil o coronel não fizera outra coisa senão esperar. Outubro era uma das poucas coisas que chegavam.
A mulher ergueu o mosquiteiro quando o viu entrar no quarto com o café. Nessa noite tivera uma crise de asma e agora passava por um estado de torpor. Mas levantou-se para receber a xícara.
E tu – disse.
Já tomei – mentiu o coronel. – Ainda havia uma colherada grande.
Nesse momento, os sinos começaram a dobrar a finados. O coronel esquecera-se do enterro. Enquanto a mulher tomava o café, desprendeu a cama de rede por uma das pontas e enrolou-a pela outra, para trás da porta. A mulher pensou no morto.
Nasceu em 1922 – disse ela. – Exatamente um mês depois do nosso filho. A sete de Abril.
Continuou a sorver o café nos intervalos da sua respiração ofegante. Era uma mulher constituída apenas de cartilagens brancas por cima de uma espinha dorsal arqueada e inflexível. As perturbações respiratórias obrigavam-na a perguntar afirmando. Quando terminou o café ainda estava a pensar no morto.
Deve ser horrível estar enterrado em Outubro – disse. Mas o marido não lhe prestou atenção. Abriu a janela. Outubro já se tinha instalado no pátio. Ao contemplar a vegetação que brotava em verdes intensos e os minúsculos buracos das minhocas no barro, o coronel voltou a sentir o mês aziago nos intestinos.
Tenho os ossos úmidos – disse.
É Inverno – respondeu a mulher. – Desde que começou a chover que ando a dizer-te que durmas com as meias calçadas.
Há uma semana que durmo com elas.
Chovia pouco mas sem pausas. O coronel teria preferido enrolar-se numa manta de lã e meter-se outra vez na rede. Mas a insistência dos sinos rachados recordou-lhe o enterro.
É Outubro – murmurou, e caminhou para o meio do quarto. Só então se lembrou do galo atado ao pé da cama. Era um galo de combate.
Depois de ir pôr a xícara na cozinha deu corda na sala a um relógio de pêndulo assente numa peanha de madeira lavrada. Ao contrário do quarto, demasiado estreito para a respiração de uma asmática, a sala era ampla, com quatro cadeiras de baloiço de fibra à volta de uma mesinha com uma toalha e um gato de gesso. Na parede oposta à do relógio, o quadro de uma mulher vestida de tule rodeada de cupidos numa barca coberta de rosas.
Eram sete e vinte quando acabou de dar corda ao relógio. A seguir levou o galo para a cozinha, atou-o a um pé do fogareiro, mudou a água da gamela e pôs-lhe ao lado um punhado de milho. Entrou um grupo de crianças pela cerca sem cancela.
Sentaram-se em volta do galo, a contemplá-lo em silêncio.
Não olhem mais para esse animal – disse o coronel. Os galos gastam-se de tanto olharem para eles.
As crianças não se mexeram. Um dos rapazes iniciou na harmônica os acordes de uma canção em voga.
Não toques hoje – disse-lhe o coronel. – Há morto na terra. – O rapaz guardou o instrumento no bolso das calças e o coronel foi ao quarto vestir-se para o enterro.
A roupa branca estava por passar a ferro por causa da asma da mulher, de maneira que o coronel teve de se decidir pelo velho fato preto que depois do casamento só usara em ocasiões muito especiais. Custou-lhe um bom bocado a encontrá-lo no fundo do baú, embrulhado em jornais e preservado das traças com bolinhas de naftalina. Deitada na cama, a mulher continuava a pensar no morto.
Já se deve ter encontrado com Agustín – disse ela. – Talvez não lhe conte a situação em que ficamos depois da morte dele.
A esta hora devem estar a discutir galos – comentou o coronel.
Encontrou no baú um chapéu de chuva enorme e antigo. Ganhara-o a mulher numa tômbola política destinada a angariar fundos para o partido do coronel. Nessa mesma noite assistiram a um espetáculo ao ar livre que não foi interrompido apesar da chuva. O coronel, a esposa e o filho Agustín – que na altura tinha oito anos – presenciaram o espetáculo até ao fim, sentados debaixo do chapéu de chuva. Agora Agustín estava morto e o tecido de cetim brilhante tinha sido destruído pelas traças.
Olha o que resta do nosso chapéu de chuva de palhaço de circo – disse o coronel, usando uma antiga frase sua. Abriu por cima da cabeça um misterioso sistema de varetas metálicas. – Agora só serve para contar as estrelas.
Sorriu. Mas a mulher não se deu ao trabalho de olhar para o chapéu de chuva.
Está tudo assim – murmurou. – Estamos a apodrecer vivos. – E fechou os olhos para pensar com mais intensidade no morto.
Depois de se barbear pelo tato – pois já não tinha espelho há muito tempo –, o coronel vestiu-se em silêncio. As calças, quase tão justas nas pernas como as ceroulas compridas, apertadas nos tornozelos com nós corrediços, seguravam-se na cintura com duas presilhas do mesmo tecido que passavam através de duas fivelas douradas cosidas à altura dos rins. Não usava cinto. A camisa cor de cartão antigo, e dura como o cartão, fechava-se com um botão de cobre que servia ao mesmo tempo para segurar o colarinho postiço. Mas o colarinho estava roto, de maneira que o coronel renunciou à gravata.
Fazia cada coisa como se fosse um ato transcendente. Os ossos das suas mãos estavam cobertos por uma pele brilhante e esticada, manchada das bexigas assim como a pele do pescoço. Antes de pôr os botins de verniz raspou o barro incrustrado na costura. A mulher viu-o nesse instante, vestido como no dia do casamento. Só então verificou até que ponto o marido tinha envelhecido.
Estás arranjado como para um acontecimento – disse.
Este enterro é um acontecimento – replicou o coronel. É o primeiro de morte natural que temos desde há muitos anos.

Gabriel Garcia Marquez, in Ninguém escreve ao Coronel 

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