terça-feira, 1 de setembro de 2020

Um bom trabalho

Eu sou um ladrão.
Como é que o sujeito se torna um ladrão? A polícia sabe? Não, não sabe. O advogado criminalista sabe? Não, não sabe. O psicólogo sabe? Não, não sabe. O psiquiatra sabe? Não, não sabe. O psicanalista sabe? Não, não sabe. (Dizem que psicanálise é um método terapêutico criado pelo médico austríaco Sigmund Freud que consiste na interpretação dos conteúdos inconscientes de palavras, ações e produções imaginárias de uma pessoa, baseada nas livres associações e na transferência. Mas esses putos também não sabem por que o sujeito se torna um ladrão.)
Pobreza? O sujeito se torna um ladrão porque é pobre? Que besteira, tem mais ladrão rico do que ladrão pobre, está provado que quanto mais dinheiro o sujeito tem mais dinheiro ele quer ter. Esses ladrões que abundam no nosso governo — executivo, principalmente, legislativo e judiciário — roubam sem parar anos seguidos, abrem contas em paraísos fiscais, para eles, para os parentes e para as amantes, principalmente para as amantes, ladrão rico tem amante, sempre.
Distúrbio mental? Eu sou ladrão e não sou maluco, nem tenho qualquer distúrbio mental. E que merda é exatamente isso de distúrbio mental? Cada especialista acha que é uma coisa. Ou seja, é uma porção de coisas. Esses especialistas não sabem porra nenhuma. Quando eu era pequeno esses especialistas diziam que ovo fazia mal, hoje eles mandam comer ovo todos os dias. Outro dia eu li uma especialista dizendo que árvore não vale nada, não fornece nenhum oxigênio para a atmosfera. Querem saber de uma coisa? Os especialistas que se fodam.
Mas, afinal, por que eu sou um ladrão?
Eu poderia dizer: “Sou ladrão porque nunca tive família, nem pai nem mãe nem ninguém.” Mas é mentira, tive pai, mãe, avô, avó, tios, primos, parentes pra caralho.
Sou ladrão porque meu pai era ladrão. Outra mentira, meu pai era um sujeito muito honesto.
Eu comecei como descuidista. O descuidista é quem se aproveita da distração de outrem para roubá-lo. Ou seja, o sujeito teve um descuido e se fodeu.
Depois passei a ser ladrão. Mas só praticava furtos. No furto você se apossa de algo que pertence a outrem usando a esperteza.
Até aí tudo bem. Então passei a praticar roubos. No roubo você comete violência física ou material. Comecei arrombando casas vazias, violência material. Depois casas ocupadas, ameaçando os moradores ou dando um tiro na perna do filho da puta para ele me dizer onde estavam o dinheiro ou as joias.
Essa progressão é natural: descuido, furto, roubo.
Tudo isso é conversa mole para boi dormir. Por que me tornei um ladrão?
Eu me tornei um ladrão porque sou corajoso e me recusei a ter um empreguinho de merda, como a maioria dos covardes. Eu era porteiro de um prédio e ficava abrindo a porta do elevador e depois a porta da rua, dizendo bom dia doutor, fosse qual fosse o filho da puta que estivesse entrando ou saindo do prédio. Um dia pensei: quero que esses caras vão todos para a puta que os pariu. Sendo pobre, feio, tendo apenas o curso primário feito em uma escola pública de merda que passava todo mundo de ano, até os analfabetos — era uma forma daqueles professores filhos da puta mostrarem serviço —, o que eu podia ser?
Ladrão, é claro.
Vivo melhor. Como melhor, durmo melhor. Olha aqui, meu chapa: larga esse emprego de merda e vai ser ladrão, deixa de ser otário.
Rubem Fonseca, in Histórias curtas

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