sexta-feira, 4 de setembro de 2020

Ovo

Hoje tive uma experiência mística. Eu vi um ovo. Sei que “Ivo viu um ovo”, como diziam as cartilhas antigas. Cartilhas não mentem. Se elas diziam que “Dedé deu o dedo à Diva”, é porque Dedé deu o dedo para a Diva. Para que Dedé deu o dedo para Diva, isso elas não dizem. E nem devo perguntar. Todo mundo viu um hoje. Mas o ovo que eu vi, eu não vi. Vi outro. Escreveu a Adélia: “De vez em quando Deus me castiga e me tira a poesia. Olho uma pedra e vejo uma pedra...”. O Drummond viu uma pedra e não viu uma pedra. A pedra que ele viu virou poema. Eu sempre olho um ovo e vejo um ovo. Hoje, tocado pela poesia, vi o ovo e não vi o ovo. Quando vi o ovo fiquei mais assombrado do que quando contemplo a Via Láctea. Porque um ovo, se uma galinha se assenta sobre ele durante 21 dias, dele sai um pintinho. Pobres dos meninos de hoje. Nunca contemplarão o milagre dos ovos se abrindo... Mas a Via Láctea, se algum ser superior a “chocar”, nenhum pintinho vai sair. Ou vai? Quem sabe a Terra é o pintinho que saiu do ovo via Láctea chocado por milhões de anos por uma Galinha Divina? Não sei. Tudo é mistério. Tudo é possível. Viver é muito perigoso.
Rubem Alves, in Do universo à jabuticaba

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