segunda-feira, 21 de setembro de 2020

O namorado de Martine

  Na juventude, Martine e Philippa haviam sido extraordinariamente belas, com a beleza quase sobrenatural das flores de árvores frutíferas ou das neves perpétuas. Nunca eram vistas nos bailes ou nas festas, mas as pessoas viravam a cabeça quando passavam na rua e os rapazes de Berlevaag iam à igreja para vê-las caminhar pela nave lateral. A irmã mais jovem era ainda dona de uma voz adorável, que aos domingos enchia a igreja com sua graça. Para a congregação do deão, o amor terreno e o ato de desposá-lo constituíam assuntos triviais, em si mesmos nada senão ilusão; mesmo assim é possível que mais de um dos velhos irmãos andasse cobiçando as jovens como rubis e que tal o dessem a entender ao pai delas. Mas o deão declarara que para ele e sua vocação as filhas eram sua mão direita e esquerda. Quem quereria privá-lo delas? E as formosas garotas haviam crescido sob o ideal do amor celeste; dele estavam repletas e não se deixavam ser tocadas pelas chamas deste mundo.

E mesmo assim perturbaram a paz de espírito de dois cavalheiros provenientes do vasto mundo fora de Berlevaag.

Havia um jovem oficial chamado Lorens Loewenhielm, que desfrutara de uma vida de dissipações na cidade para onde fora destacado e contraíra dívidas. No ano de 1854, quando Martine tinha a idade de dezoito, e Philippa, dezessete, um indignado pai obrigou-o a fazer uma visita mensal à tia em sua velha casa de campo em Fossum, perto de Berlevaag, onde teria tempo de refletir e melhorar seus hábitos. Certo dia, cavalgou até a cidade e avistou Martine na praça do mercado. Do alto da montaria, fitou a linda moça, que devolveu o olhar ao belo cavaleiro. Depois que ela passou e desapareceu, ficou sem saber se devia acreditar nos próprios olhos.

Na família Loewenhielm havia algo como uma lenda de que muito tempo antes um dos ancestrais desposara uma huldre, um espírito das montanhas norueguesas, tão bela que o ar ao seu redor cintila e se agita. Desde então, de tempos em tempos, alguns membros da família tornaram-se clarividentes. O jovem Lorens até o momento não tomara ciência de nenhum dom espiritual particular em sua própria natureza. Mas, naquele preciso instante, saltou diante de seus olhos uma visão súbita, poderosa, de uma vida mais elevada e pura, sem credores, cartas de cobrança ou sermões paternos, sem desagradáveis e secretas dores de consciência e com um gentil anjo de cabelos dourados a guiá-lo e recompensá-lo.

Por intermédio da tia devota, conseguiu ser admitido na casa do deão e viu que Martine era ainda mais adorável sem a touca. Seguia sua figura esguia com olhar de veneração, mas abominava e desprezava a figura que ele próprio fazia em sua presença. Ficava atônito e chocado com o fato de não conseguir encontrar absolutamente nada para dizer e nenhuma inspiração no copo d’água pousado diante dele. “A misericórdia e a verdade, caros irmãos, encontraram uma à outra”, dizia o deão. “A retidão e a bem-aventurança beijaram uma à outra.” E os pensamentos do jovem estavam no momento em que Lorens e Martine estariam beijando um ao outro. Repetia sua visita regularmente, e a cada vez sentia-se menor, mais insignificante e desprezível.

Quando voltava à noite para a casa da tia, chutava as paredes do quarto com as reluzentes botas de montaria; chegou até a deitar a cabeça na mesa e chorar.

No último dia de sua estadia, fez uma última tentativa de comunicar os sentimentos a Martine. Até então, sempre fora fácil para ele dizer a uma garota bonita que a amava, mas as palavras ternas ficaram presas em sua garganta quando fitou o rosto da donzela. Após se despedir dos demais, Martine o acompanhou à porta com um castiçal na mão. A luz brilhou em seus lábios e projetou-lhe no rosto as sombras de seus longos cílios. Estava prestes a sair em mudo desespero quando, ali na soleira, subitamente agarrou sua mão e apertou-a contra os lábios.

Vou partir para sempre!”, gemeu. “Nunca, nunca mais a verei! Pois aprendi aqui que o destino é severo e que neste mundo há coisas impossíveis!”

Ao ver-se de volta à cidade com sua guarnição, acreditou que a aventura terminara, descobrindo que não gostava nem um pouco de pensar naquilo. Enquanto os outros jovens oficiais contavam seus casos amorosos, permanecia silencioso a respeito do seu. Pois, visto do rancho dos oficiais, o que equivale a dizer, visto aos olhos deles, a história era deplorável. Como fora acontecer de um tenente dos hussardos se deixar derrotar e frustrar por um punhado de sectários melancólicos, nas austeras dependências sem tapetes da casa de um velho deão?

Então teve medo; o pânico se abateu sobre ele. Seria a loucura familiar que o levava a continuar carregando consigo a imagem sonhadora de uma jovem tão bela que fazia o ar em torno brilhar de pureza e santidade? Não queria ser um sonhador; queria ser como seus irmãos de armas.

Assim, procurou se controlar e, no maior esforço de sua juventude, determinou-se a esquecer o ocorrido em Berlevaag. Dali em diante, resolveu, olharia para a frente, não para o passado. Iria se concentrar em sua carreira e logo chegaria o dia em que faria uma figura brilhante num mundo brilhante.

Sua mãe ficou satisfeita com o resultado da estadia em Fossum e em suas cartas expressava toda a gratidão à tia. Mal sabia ela por que estranhos, tortuosos caminhos o filho alcançara aquela feliz perspectiva moral.

O ambicioso jovem oficial em pouco tempo chamou a atenção dos superiores e foi promovido com rapidez extraordinária. Enviaram-no para França e Rússia e ao regressar casou-se com uma dama de companhia da rainha Sofia. Nesses altos círculos movia-se com graça e leveza, satisfeito com seu meio e consigo mesmo. Chegou até, com o correr do tempo, a tirar benefício das palavras e atos que ficaram gravados em sua mente na casa do deão, pois o comportamento devoto agora estava em moda na corte.

Na casa amarela de Berlevaag, Philippa às vezes desviava a conversa para o belo e silencioso jovem que tão subitamente aparecera para do mesmo modo tornar a desaparecer. A irmã mais velha então respondia delicadamente, com o rosto sereno, imperturbável, e encontrava outros assuntos para discutir.

Karen Blixen, in A festa de Babette

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