(2)
capítulo sobre o que se impõe aos súditos quanto ao aconselhamento
do rei — o que beneficia tanto o aconselhador como o aconselhado,
pois os misteres do rei e dos súditos estão entrelaçados —,
contendo a prova de que quem aconselha o rei aconselha a si mesmo
Certo
dia, ele perguntou a esse amigo: “Acaso não vês, meu irmão, que
o leão anda acompanhado por um pensamento que ele oculta, e guarda
dentro de si algo que não demonstra?”. O amigo lhe respondeu:
“Quem se abalança ao que não lhe concerne acabará prejudicando,
destarte, aquilo que lhe concerne. Não temos de observar uma questão
que não é nossa, pois gozamos de um bem-estar ao qual devemos nos
apegar enquanto ele estiver apegado a nós”. Disse o Mergulhador:
“Já ouvi o que disseste; porém, impõe-se aos súditos que se
esforcem para o bem do rei e seu auxílio em tudo quanto possam no
que tange a bons pareceres e capacidade, tal como deve o rei
despender por seus súditos aquilo que lhes melhora a situação
relativamente à administração e aos mantimentos, pois no bom
estado do rei está o bom estado de seu reino, e no bom estado de seu
reino está o bom estado do conjunto, do qual o aconselhador é
parte, sendo prejudicado pelo que prejudica esse conjunto e
beneficiado pelo que o beneficia. Os sábios já disseram: Trai a si
mesmo quem poupa seus conselhos ao rei, é avaro em seus bons
pareceres para com o amigo e esconde do médico sua doença. E
disseram: Ninguém tem mais prioridade em fazer boas ações do que o
governante, nem ninguém tem mais direito de aconselhar do que o
governado, pois o governante, caso pereçam os governados, não terá
governança, e os súditos, caso não sejam tratados com justiça,
perecerão. Portanto, aquele dentre os súditos que trapacear com os
governantes estará trapaceando consigo mesmo, e quem os aconselhar a
si mesmo estará aconselhando. O rei não tem mais necessidade de
fazer prosperar o reino do que os habitantes têm de que esse reino
prospere. Conta-se que certo rei disse a seus súditos: Cada um de
vós deve crer que, ao combater pela fé, é com a alma que estará
lutando em prol de si mesmo, e é com o coração que estará
defendendo o próprio harém; se não o fizerdes, sabei que vossos
inimigos serão os mais satisfeitos com essa situação, e os menos
receosos dela. O mundo inteiro está interligado tal como estão o
agricultor, cujos interesses só se completam com o ferreiro, e o
ferreiro, cuja subsistência não se provê senão por meio do
agricultor, e tal como o pássaro que limpa os dentes do crocodilo,
com o que um se beneficia e o outro é recompensado, e tal como a
escrita no volume de um caderno, cujo sentido não aparecerá senão
quando for agrupada; também assim são as coisas do mundo, cuja
sabedoria não se conhece em suas partes, mas sim com a reunião de
uma à outra, sendo por isso dificultoso, para quem não olha o mundo
com olhar totalizante, descortinar sabedoria em suas partes, pois
destarte verá algo incompleto cuja completude está em outro, este
sim de bom proveito em sua totalidade, e será como aquele que, vendo
a bainha de uma espada sem nunca ter visto uma espada, julga-lhe o
fabricante ignaro, mas depois, ao saber de seu benefício, julga-o
sábio. Vislumbro algo no íntimo do rei, e me esforçarei para que o
fim de suas preocupações esteja em minhas mãos e em meu parecer;
senti isso em meu íntimo e fui movido a ele por algo, em meu
coração, que eu não conhecia em mim mesmo, apesar do que tu sabes
sobre meu amor à obscuridade e minha pouca exposição ao que não
seja ela. Presumo que foi a boa sorte do rei que me moveu, e que com
ele provocarei um encontro”. Disse-lhe o amigo: “Não te leve a
aproximar-te dos reis o amor da procura excessiva por ruínas
evanescentes, pois o muito que recebes na escassez é o mesmo do qual
na abundância desdenhas, preferindo arrostar perigos e sofrer
fadigas. Fica sabendo que o ganho da formiga, malgrado o seu muito
acumular, é o mesmo da ave que chega famélica e parte empanzinada,
e que o passarinho obtém para viver, apesar de sua fraqueza, tanto
quanto obtém o elefante com sua força e o leão com sua coragem, e
que a toupeira cega, com sua falta de condições e discrição,
alcança tanto quanto a águia, com sua aguda visão e amplo espaço
de caça. Certo sábio disse: ‘Existem no dinheiro três
características que impedirão seu detentor de entristecer-se por
ele’. Perguntou-se-lhe: ‘Quais são?’. Respondeu: ‘Não se
ganha licitamente’. Perguntaram: ‘Mas e se o for?’. Respondeu:
‘Afastá-lo-á da verdade’. Perguntaram: ‘Mas e se não
afastar?’. Respondeu: ‘O trabalho de fazê-lo render afastá-lo-á
da adoração de seu senhor’. Disseram: Acautela-te da colaboração
com o soberano, pois, quando ele recorre a ti, é fadiga, e, quando
te evita, é humilhação. E já se disse: O que de melhor há na
altanaria é o pairar acima dos defeitos alheios, e o abandonar a
submissão quando ela excede o aceitável. E já se disse: A fadiga
de cada um é na medida de seu cuidado; sua pobreza, na medida de sua
ambição; seu sossego, na medida de sua resignação; e sua riqueza
será correspondente a sua satisfação. Eu te aviso, meu irmão, de
que teu empenho no dever poderá exceder-se, e então teu paradigma
será o mesmo que o do falcão e da perdiz”. O Mergulhador
perguntou: “E como foi, meu irmão, o caso deles?”. O amigo
respondeu:
O
falcão e a perdiz
Conta-se
que certo sátrapa foi até um príncipe de ¿uråsån levando um
falcão e uma perdiz, e disse: “Ó príncipe, passei por um bosque,
ateei fogo numa de suas bordas e esta perdiz saiu voando; então
enviei este meu falcão para pegá-la, e ele lhe seguiu no encalço;
ela se manteve em fuga até que o forte medo a fez cair no fogo; o
falcão precipitou-se em seu rastro e se queimaram ambos. Então, eu
tos trouxe a fim de que vejas as consequências do empenho no dever e
da covardia”.
[Prosseguiu
o amigo:] “E eu receio que tu tenhas o fim de ambos, pois te vejo
empenhado naquilo que te prejudicará, e covarde no controlar-te a ti
mesmo”. O Mergulhador lhe disse: “Não é o amor do acúmulo o
que me preocupa, nem o mundo terreno o que busco, mas sim que no
julgamento das pessoas esta minha ação seja considerada boa”.
Disse-lhe
o amigo: “O soberano, meu irmão, tem lá seus colaboradores, bem
como o saber tem lá seus colaboradores. Não é tal como procede no
mundo que o homem procede quando colabora com os reis, e se tu serves
para ser colaborador do soberano, então os colaboradores do soberano
servem para o saber. Teu paradigma, neste caso, é o do homem que
encontrou uma peneira sobre a cama”. Perguntou o Mergulhador: “E
como foi o caso dele?”. Respondeu:
O
homem, a peneira e o gancho de parede
Conta-se
que um homem, cuja mulher era mal-educada, foi certo dia para casa e,
encontrando uma peneira sobre sua cama, agarrou-se a um gancho na
parede. A mulher perguntou: “O que é isso?”, e ele respondeu:
“Se aquele for o lugar da peneira, então é este o meu lugar”.
[Prosseguiu
o amigo:] “E os sábios já disseram: O inteligente não deve obter
senão o máximo e só ter como colaboradores os que lhe são
próximos em moral. Nem a condição de colaborador do soberano é o
máximo que tu podes obter, nem esse rei é daqueles em cuja moral se
possa confiar que seja próxima da tua. Dize-me, pois, como te
dispuseste a fazer isso, pois eu não te conheço senão amante da
quietude, cuja ocupação com o saber te impede de outra coisa, um
dos poucos que, esgotando uma questão [intelectual], se lança a
outra equivalente”.
Disse-lhe
o Mergulhador: “Temo que meu saber se constitua num argumento
contra mim, pois venturoso é quem utiliza as dádivas que Deus lhe
concedeu para com elas aproximar-se dele; assim, a virtude que
recebeu será motivo para uma virtude maior ainda, e ele agradecerá
por ela utilizando-a na obediência de quem lha concedeu; que Deus
nos faça, bem como a ti, daqueles que se beneficiam com seu saber, e
que não seja esse saber um argumento para negligenciá-lo, pois o
ignorante é mais desculpável que o sábio negligente. Deus meu, não
faças que a virtude a mim concedida por ti seja motivo de tua
punição por negligência dos deveres que ela impõe, ou seu
incorreto emprego, pois assim tua graça a mim concedida será motivo
de tua punição, e tua bondade para comigo, motivo de tua cólera
contra mim”.
Disse
o amigo: “Sê cuidadoso e não te apresses, pois já se disse: És
mais capaz de evitar o que ainda não fizeste que desfazer o que já
fizeste”.
Disse
o Mergulhador: “Meu irmão, parece-me que a armadilha, quando passa
o seu tempo, volta-se contra o seu responsável em razão da tristeza
e do arrependimento causados pelo desperdício da oportunidade”.
Disse-lhe
o amigo: “Não suponho senão que tenhas sentido em teu interior
uma força na qual vislumbraste um mérito que te desgostou
desperdiçar. Na utilização desse mérito, para a qual não te
empurra nenhuma necessidade, não vejo como paradigma para ti senão
o do mendigo de boa situação”. Perguntou o Mergulhador: “E qual
é esse paradigma?”. Respondeu o amigo:
O
mendigo habilidoso
Contam
que um homem de boa situação mendigava dos outros tudo quanto
tivessem em mãos, e então um seu amigo o censurou por tal atitude,
ao que ele respondeu: “Meu filho, o meu mendigar é tão hábil que
minha alma não o deseja abandonar!”.
[Prosseguiu
o amigo:] “Também tu encontraste em ti um mérito que tua alma não
considera agradável desperdiçar. Mas fica sabendo, meu irmão, que
isso começou a se gerar nas pessoas devido à fraqueza do homem em
resistir a sua natureza, e a seu pouco autodomínio; assim, tornada a
sua inteligência incapaz de lhe comandar as virtudes, ele as guarda
num ponto que não é o delas e as exibe em lugar inadequado, sendo
então seu paradigma o do remédio benéfico e do alimento adequado,
os quais, aplicados em lugares impróprios, podem tornar-se mais
mortais que veneno agudo. E o paradigma da inteligência é o do rei
cujos soldados são as virtudes: quando alguma das virtudes do homem
lhe supera a inteligência, seu paradigma será o do reino cujo rei
os súditos derrotaram ao lhe desqualificarem os pareceres e lhe
corromperem a administração . Quanto eloquente não foi aniquilado
por sua própria eloquência! Quanto sábio não foi arruinado por
seu próprio saber! Quanto corajoso não foi morto por sua própria
coragem! E para quanto virtuoso a inexistência da virtude teria sido
melhor! Por isso já se disse: Aquele cuja inteligência não for a
parte preponderante de seu bem será aniquilado pela outra parte
preponderante de seu bem. Portanto, pensa com cuidado, meu irmão,
cuida-te e não te apresses”.
Disse
o Mergulhador: “O que temo é que a oportunidade que tenho hoje se
transforme amanhã em minha agonia, e o benefício que espero para
mim e para toda a população do reino torne-se uma das partes do
prejuízo, pois quem desperdiça o momento em que surge a
oportunidade é bem merecedor do arrependimento como consequência, e
com o arrependimento vem a tristeza, e com a tristeza, a debilidade
do coração e do fígado, com o que morrerei abandonado ou viverei
desolado”.
Mamede
Mustafa
Jarouche,
in
O
leão e o chacal mergulhador
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