quarta-feira, 9 de setembro de 2020

O leão e o chacal mergulhador - Capítulo 2

(2) capítulo sobre o que se impõe aos súditos quanto ao aconselhamento do rei — o que beneficia tanto o aconselhador como o aconselhado, pois os misteres do rei e dos súditos estão entrelaçados —, contendo a prova de que quem aconselha o rei aconselha a si mesmo

Certo dia, ele perguntou a esse amigo: “Acaso não vês, meu irmão, que o leão anda acompanhado por um pensamento que ele oculta, e guarda dentro de si algo que não demonstra?”. O amigo lhe respondeu: “Quem se abalança ao que não lhe concerne acabará prejudicando, destarte, aquilo que lhe concerne. Não temos de observar uma questão que não é nossa, pois gozamos de um bem-estar ao qual devemos nos apegar enquanto ele estiver apegado a nós”. Disse o Mergulhador: “Já ouvi o que disseste; porém, impõe-se aos súditos que se esforcem para o bem do rei e seu auxílio em tudo quanto possam no que tange a bons pareceres e capacidade, tal como deve o rei despender por seus súditos aquilo que lhes melhora a situação relativamente à administração e aos mantimentos, pois no bom estado do rei está o bom estado de seu reino, e no bom estado de seu reino está o bom estado do conjunto, do qual o aconselhador é parte, sendo prejudicado pelo que prejudica esse conjunto e beneficiado pelo que o beneficia. Os sábios já disseram: Trai a si mesmo quem poupa seus conselhos ao rei, é avaro em seus bons pareceres para com o amigo e esconde do médico sua doença. E disseram: Ninguém tem mais prioridade em fazer boas ações do que o governante, nem ninguém tem mais direito de aconselhar do que o governado, pois o governante, caso pereçam os governados, não terá governança, e os súditos, caso não sejam tratados com justiça, perecerão. Portanto, aquele dentre os súditos que trapacear com os governantes estará trapaceando consigo mesmo, e quem os aconselhar a si mesmo estará aconselhando. O rei não tem mais necessidade de fazer prosperar o reino do que os habitantes têm de que esse reino prospere. Conta-se que certo rei disse a seus súditos: Cada um de vós deve crer que, ao combater pela fé, é com a alma que estará lutando em prol de si mesmo, e é com o coração que estará defendendo o próprio harém; se não o fizerdes, sabei que vossos inimigos serão os mais satisfeitos com essa situação, e os menos receosos dela. O mundo inteiro está interligado tal como estão o agricultor, cujos interesses só se completam com o ferreiro, e o ferreiro, cuja subsistência não se provê senão por meio do agricultor, e tal como o pássaro que limpa os dentes do crocodilo, com o que um se beneficia e o outro é recompensado, e tal como a escrita no volume de um caderno, cujo sentido não aparecerá senão quando for agrupada; também assim são as coisas do mundo, cuja sabedoria não se conhece em suas partes, mas sim com a reunião de uma à outra, sendo por isso dificultoso, para quem não olha o mundo com olhar totalizante, descortinar sabedoria em suas partes, pois destarte verá algo incompleto cuja completude está em outro, este sim de bom proveito em sua totalidade, e será como aquele que, vendo a bainha de uma espada sem nunca ter visto uma espada, julga-lhe o fabricante ignaro, mas depois, ao saber de seu benefício, julga-o sábio. Vislumbro algo no íntimo do rei, e me esforçarei para que o fim de suas preocupações esteja em minhas mãos e em meu parecer; senti isso em meu íntimo e fui movido a ele por algo, em meu coração, que eu não conhecia em mim mesmo, apesar do que tu sabes sobre meu amor à obscuridade e minha pouca exposição ao que não seja ela. Presumo que foi a boa sorte do rei que me moveu, e que com ele provocarei um encontro”. Disse-lhe o amigo: “Não te leve a aproximar-te dos reis o amor da procura excessiva por ruínas evanescentes, pois o muito que recebes na escassez é o mesmo do qual na abundância desdenhas, preferindo arrostar perigos e sofrer fadigas. Fica sabendo que o ganho da formiga, malgrado o seu muito acumular, é o mesmo da ave que chega famélica e parte empanzinada, e que o passarinho obtém para viver, apesar de sua fraqueza, tanto quanto obtém o elefante com sua força e o leão com sua coragem, e que a toupeira cega, com sua falta de condições e discrição, alcança tanto quanto a águia, com sua aguda visão e amplo espaço de caça. Certo sábio disse: ‘Existem no dinheiro três características que impedirão seu detentor de entristecer-se por ele’. Perguntou-se-lhe: ‘Quais são?’. Respondeu: ‘Não se ganha licitamente’. Perguntaram: ‘Mas e se o for?’. Respondeu: ‘Afastá-lo-á da verdade’. Perguntaram: ‘Mas e se não afastar?’. Respondeu: ‘O trabalho de fazê-lo render afastá-lo-á da adoração de seu senhor’. Disseram: Acautela-te da colaboração com o soberano, pois, quando ele recorre a ti, é fadiga, e, quando te evita, é humilhação. E já se disse: O que de melhor há na altanaria é o pairar acima dos defeitos alheios, e o abandonar a submissão quando ela excede o aceitável. E já se disse: A fadiga de cada um é na medida de seu cuidado; sua pobreza, na medida de sua ambição; seu sossego, na medida de sua resignação; e sua riqueza será correspondente a sua satisfação. Eu te aviso, meu irmão, de que teu empenho no dever poderá exceder-se, e então teu paradigma será o mesmo que o do falcão e da perdiz”. O Mergulhador perguntou: “E como foi, meu irmão, o caso deles?”. O amigo respondeu:

O falcão e a perdiz
Conta-se que certo sátrapa foi até um príncipe de ¿uråsån levando um falcão e uma perdiz, e disse: “Ó príncipe, passei por um bosque, ateei fogo numa de suas bordas e esta perdiz saiu voando; então enviei este meu falcão para pegá-la, e ele lhe seguiu no encalço; ela se manteve em fuga até que o forte medo a fez cair no fogo; o falcão precipitou-se em seu rastro e se queimaram ambos. Então, eu tos trouxe a fim de que vejas as consequências do empenho no dever e da covardia”.
[Prosseguiu o amigo:] “E eu receio que tu tenhas o fim de ambos, pois te vejo empenhado naquilo que te prejudicará, e covarde no controlar-te a ti mesmo”. O Mergulhador lhe disse: “Não é o amor do acúmulo o que me preocupa, nem o mundo terreno o que busco, mas sim que no julgamento das pessoas esta minha ação seja considerada boa”.
Disse-lhe o amigo: “O soberano, meu irmão, tem lá seus colaboradores, bem como o saber tem lá seus colaboradores. Não é tal como procede no mundo que o homem procede quando colabora com os reis, e se tu serves para ser colaborador do soberano, então os colaboradores do soberano servem para o saber. Teu paradigma, neste caso, é o do homem que encontrou uma peneira sobre a cama”. Perguntou o Mergulhador: “E como foi o caso dele?”. Respondeu:

O homem, a peneira e o gancho de parede
Conta-se que um homem, cuja mulher era mal-educada, foi certo dia para casa e, encontrando uma peneira sobre sua cama, agarrou-se a um gancho na parede. A mulher perguntou: “O que é isso?”, e ele respondeu: “Se aquele for o lugar da peneira, então é este o meu lugar”.
[Prosseguiu o amigo:] “E os sábios já disseram: O inteligente não deve obter senão o máximo e só ter como colaboradores os que lhe são próximos em moral. Nem a condição de colaborador do soberano é o máximo que tu podes obter, nem esse rei é daqueles em cuja moral se possa confiar que seja próxima da tua. Dize-me, pois, como te dispuseste a fazer isso, pois eu não te conheço senão amante da quietude, cuja ocupação com o saber te impede de outra coisa, um dos poucos que, esgotando uma questão [intelectual], se lança a outra equivalente”.
Disse-lhe o Mergulhador: “Temo que meu saber se constitua num argumento contra mim, pois venturoso é quem utiliza as dádivas que Deus lhe concedeu para com elas aproximar-se dele; assim, a virtude que recebeu será motivo para uma virtude maior ainda, e ele agradecerá por ela utilizando-a na obediência de quem lha concedeu; que Deus nos faça, bem como a ti, daqueles que se beneficiam com seu saber, e que não seja esse saber um argumento para negligenciá-lo, pois o ignorante é mais desculpável que o sábio negligente. Deus meu, não faças que a virtude a mim concedida por ti seja motivo de tua punição por negligência dos deveres que ela impõe, ou seu incorreto emprego, pois assim tua graça a mim concedida será motivo de tua punição, e tua bondade para comigo, motivo de tua cólera contra mim”.
Disse o amigo: “Sê cuidadoso e não te apresses, pois já se disse: És mais capaz de evitar o que ainda não fizeste que desfazer o que já fizeste”.
Disse o Mergulhador: “Meu irmão, parece-me que a armadilha, quando passa o seu tempo, volta-se contra o seu responsável em razão da tristeza e do arrependimento causados pelo desperdício da oportunidade”.
Disse-lhe o amigo: “Não suponho senão que tenhas sentido em teu interior uma força na qual vislumbraste um mérito que te desgostou desperdiçar. Na utilização desse mérito, para a qual não te empurra nenhuma necessidade, não vejo como paradigma para ti senão o do mendigo de boa situação”. Perguntou o Mergulhador: “E qual é esse paradigma?”. Respondeu o amigo:

O mendigo habilidoso
Contam que um homem de boa situação mendigava dos outros tudo quanto tivessem em mãos, e então um seu amigo o censurou por tal atitude, ao que ele respondeu: “Meu filho, o meu mendigar é tão hábil que minha alma não o deseja abandonar!”.
[Prosseguiu o amigo:] “Também tu encontraste em ti um mérito que tua alma não considera agradável desperdiçar. Mas fica sabendo, meu irmão, que isso começou a se gerar nas pessoas devido à fraqueza do homem em resistir a sua natureza, e a seu pouco autodomínio; assim, tornada a sua inteligência incapaz de lhe comandar as virtudes, ele as guarda num ponto que não é o delas e as exibe em lugar inadequado, sendo então seu paradigma o do remédio benéfico e do alimento adequado, os quais, aplicados em lugares impróprios, podem tornar-se mais mortais que veneno agudo. E o paradigma da inteligência é o do rei cujos soldados são as virtudes: quando alguma das virtudes do homem lhe supera a inteligência, seu paradigma será o do reino cujo rei os súditos derrotaram ao lhe desqualificarem os pareceres e lhe corromperem a administração . Quanto eloquente não foi aniquilado por sua própria eloquência! Quanto sábio não foi arruinado por seu próprio saber! Quanto corajoso não foi morto por sua própria coragem! E para quanto virtuoso a inexistência da virtude teria sido melhor! Por isso já se disse: Aquele cuja inteligência não for a parte preponderante de seu bem será aniquilado pela outra parte preponderante de seu bem. Portanto, pensa com cuidado, meu irmão, cuida-te e não te apresses”.
Disse o Mergulhador: “O que temo é que a oportunidade que tenho hoje se transforme amanhã em minha agonia, e o benefício que espero para mim e para toda a população do reino torne-se uma das partes do prejuízo, pois quem desperdiça o momento em que surge a oportunidade é bem merecedor do arrependimento como consequência, e com o arrependimento vem a tristeza, e com a tristeza, a debilidade do coração e do fígado, com o que morrerei abandonado ou viverei desolado”.
Mamede Mustafa Jarouche, in O leão e o chacal mergulhador

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