sábado, 12 de setembro de 2020

O caso da caneta de ouro



Chamo este de o caso da caneta de ouro. Na verdade é sem mistérios. Mas meu ideal seria escrever alguma coisa que pelo menos no título lembrasse Agatha Christie.
Acharam por bem dar-me de presente uma caneta de ouro. Sempre escrevi com lápis-tinta ou, é claro, à máquina. Mas se me veio uma caneta de ouro, por que não? Ela é bonita e de boa marca. Tive logo um problema ao qual também não dei importância. O probleminha era: com caneta de ouro devem-se escrever coisas de ouro? Teria que escrever frases especiais porque o instrumento era mais precioso? E terminaria eu mudando de jeito de escrever? E se o jeito mudasse, na certa ele iria, por seu turno, me influenciar – e eu também mudaria. Mas em que sentido? Para melhor? Outra questão: com caneta de ouro eu cairia no problema do Rei Midas, e tudo o que ela escrevesse teria a rigidez faiscante e implacável do ouro?
A esses probleminhas, como eu disse, não dei importância maior: estou habituada a não considerar perigoso pensar. Penso e não me impressiono.
O que veio depois, sim, foi problema maior. O caso é que tenho uma só caneta de ouro e dois filhos. Mas estou-me precipitando, devo começar pelo início.
Meu filho menor, ao ver a caneta de ouro, sofreu uma transformação fisionômica realmente notável. Não disse uma palavra, depois de examiná-la. Seu rosto porém era a verdadeira máscara da mais bela cobiça. A cobiça por uma coisa bonita. Os olhos brilhavam em silêncio. Entendi. Ele queria a caneta de ouro. Era tão simples.
Então ajudei: “Já sei o que você está pensando, está pensando que essa caneta vai terminar nas suas mãos.” Silêncio dele. Luta entre o desejo e a culpa. Venceu a culpa, ele sugeriu sem nenhum entusiasmo: “Você poderia mandar gravar seu nome nela e usar.” Eu disse: “Mas se eu fizer isso, você depois vai ter que usar uma caneta gravada com outro nome.” Silêncio, reflexão profunda. Depois, com desânimo: “É, mas se eu usar agora ou roubam ou eu perco.” Era mesmo. Então nós dois passamos a refletir juntos. Minha reflexão foi produtiva: tive uma ideia. “Olhe, a caneta será sua quando você terminar o ginásio, porque já estará mais crescido, não roubam você e você será mais cuidadoso.” “Ah é.” Mas ainda se sentia culpado, como se a caneta, me pertencendo, ele a estivesse tirando de mim. Mal sabendo como eu gosto que eles tirem coisas de mim.
Um dia depois já não havia sinal de culpa.
Eu não achara um lápis-tinta para anotar um recado, e havia recorrido à caneta de ouro. Foi quando ele entrou e surpreendeu-me em flagrante. “Ah essa não!”, reclamou indignado. “Por quê?”, perguntei, “não posso usar de vez em quando a tua futura caneta!” “Mas você vai terminar estragando, veja, ela já está até um pouco arranhada!” Tinha razão: a caneta ia ser dele e eu devia ter mais cuidado. Mostrei-lhe então onde ia guardá-la, e prometi que não a usaria.
Mas – tenho dois filhos. E por que o outro não havia pedido? Fiquei triste. Achava mais certo que houvesse uma disputa franca entre os dois a propósito da caneta de ouro, e não que um deles nem sequer pedisse.
Esperei um momento em que estivéssemos a sós, os dois. Contei-lhe então a história e terminei dizendo: “Se você tivesse pedido antes, eu teria dado a caneta a você.” “Eu nem sabia que você tinha uma caneta de ouro.” “Pois devia saber, você anda distraído, e não ouve as conversas de casa.” Silêncio. Perguntei esperançosa: “Mas se você soubesse que eu tinha ganhado a caneta, pediria para você?” “Não.” “Por quê?” “Porque é muito cara.” “E você então não merece uma coisa cara?” “Você já teve outras coisas caras e eu não pedi.” “Por quê?” “Senão você fica sem nenhuma.” “Eu não me incomodo.”
Ficamos em silêncio, num impasse total.
Afinal ele quis resolver de uma vez o assunto e disse: “Para mim não faz diferença. Contanto que a caneta escreva, qualquer uma serve.”
A resposta era válida, inclusive para mim. Mas não gostei. Alguma coisa nessa conversa não estava bem. Preferia que fosse... Não sei. Sei lá. É. Mas não gostei, que é que posso fazer, não gostei e é isso mesmo.
De repente, descobri. Pouco estava importando a caneta de ouro. O que importava é que um filho pedia e o outro não pedia. Retomei a conversa: “Vem cá, por que é que você não me pede coisas?”
A resposta foi pronta e contundente: “Eu já pedi muitas e você não me deu nada.”
A acusação era tão dura que fiquei estarrecida. Inclusive não era verdade. Mas, exatamente por não ser verdade, é que se tornava mais grave. Ele tinha uma queixa tão profunda que a transformara nessa inverdade.
O que é que você pediu e eu não dei?” “Quando eu era pequeno eu pedi uma câmara, quer dizer, um desses tipos de pneus que servem de boia para eu ir à praia.” “E eu não dei?” “Não.” “Você quer que eu dê agora?” “Não, agora não preciso mais.” “Que pena que eu não tenha dado.”
Ele teve piedade de mim: “Mas você não se lembra. Não deu porque disse que era perigoso, que fica boiando nas ondas e as ondas levavam para longe no mar, e eu era muito pequeno, não sabia nadar.” “Você sabe então que eu não queria arriscar a te perder no mar.” “Sei.” Mas ficara a mágoa.
A caneta de ouro nos levara longe. Achei melhor parar. E por aí ficamos. Nem sempre esmiuçar demais dá certo.
Clarice Lispector, in Todas as crônicas

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