segunda-feira, 7 de setembro de 2020

O canto da dança

Certo dia, ao anoitecer, Zaratustra andava pela floresta com seus discípulos; e, quando buscava uma fonte, eis que chegou a um verde prado, silenciosamente rodeado de árvores e arbustos. Nele havia garotas que dançavam entre si. Tão logo reconheceram Zaratustra, interromperam a dança; mas Zaratustra se aproximou com gestos amigáveis e lhes disse estas palavras:
Não interrompais a dança, graciosas garotas! Não é um desmancha-prazeres com o olhar ruim que vos chega, nem um inimigo das garotas.
Sou o advogado de Deus perante o Diabo: mas este é o espírito de gravidade. Como poderia eu, ó leves criaturas, ser inimigo das danças divinas? Ou dos pés de moças com belos tornozelos?
É certo que sou uma floresta e uma noite de árvores escuras: mas quem não receia minha escuridão, também encontra rosas sob os meus ciprestes.
E também encontra o pequeno deus que é o favorito das moças: junto à fonte se acha ele deitado, em silêncio, de olhos fechados.
Na verdade, em pleno dia ele adormeceu, o mandrião! Terá corrido demais em busca de borboletas?
Não vos zangueis comigo, ó belas dançarinas, se eu disciplinar um pouco o pequeno deus! Ele vai gritar certamente, e chorar — mas é de rir até quando chora!
E com lágrimas nos olhos ele vos pedirá uma dança; e eu próprio entoarei um canto para a sua dança:
Um canto para dançar e zombar do espírito de gravidade, do meu altíssimo e poderosíssimo Diabo, do qual dizem ser ‘o senhor do mundo’.” —
E eis o canto que Zaratustra entoou, enquanto Cupido e as moças dançavam:

Em teus olhos olhei há pouco, ó vida! E parecia que eu afundava no insondável.
Mas me puxaste para fora com anzol de outro; e riste zombeteira, quando te chamei insondável.
É o que dizem todos os peixes”, falaste; “o que eles não sondam é insondável.
Mas sou apenas inconstante e selvagem, e em tudo uma mulher, e não sou virtuosa:
Embora eu seja chamada por vós, homens, ‘a profunda’, ou ‘a fiel’, ‘a eterna’, ‘a misteriosa’.
Mas vós nos presenteais sempre com as próprias virtudes — ah, virtuosos!”
Assim riu ela, a inacreditável; mas eu jamais acredito nela e em seu riso, quando fala mal de si mesma.
E, quando falei a sós com minha selvagem sabedoria, disse-me esta, aborrecida: “Tu queres, desejas, amas, apenas por isso louvas a vida!”.
Quase respondi mal e disse a verdade àquela aborrecida; e não se pode responder pior do que quando se “diz a verdade” a sua própria sabedoria.
Assim estão as coisas entre nós três. No fundo amo apenas a vida — e, na verdade, sobretudo quando a detesto!
Mas que eu seja bom com a sabedoria, e frequentemente bom demais: isso vem de que ela me recorda demais a vida!
Tem seus olhos, seu riso e até sua dourada varinha de pescar: que posso fazer, se as duas tanto se parecem?
E, quando, certa vez, a vida me perguntou: Quem é essa então, a sabedoria? — eu respondi sofregamente: “Oh, sim, a sabedoria!
Temos sede dela e não nos saciamos, olhamos através dos véus, agarramos através das redes.
É bonita? Que sei eu! Mas as mais velhas carpas ainda são fisgadas com ela.
É inconstante e teimosa; muitas vezes a vi morder os lábios e pentear-se a contrapelo.
Talvez seja má e falsa, e em tudo uma fêmea; mas, quando fala mal de si mesma, é então que mais seduz.”
Quando falei isso à vida, ela riu maldosamente e fechou os olhos. “De quem falas?”, perguntou, “de mim, certamente?
E, ainda que tivesses razão — dizer-me isso assim na cara! Mas agora fala também de tua sabedoria!”
Ah, e abriste novamente os olhos, amada vida! E pareceu-me que eu novamente afundava no insondável. —

Assim cantou Zaratustra.
Mas, quando a dança chegou ao fim e as moças partiram, ele se entristeceu.
Há muito o sol se pôs, disse afinal; o prado está úmido, e um frio vem dos bosques.
Algo desconhecido está ao meu redor, e olha pensativo. Como? Ainda vives, Zaratustra?
Por quê? Para quê? Com quê? Para onde? Onde? Como? Não é tolice ainda viver?
Ah, meus amigos, é a noite que assim pergunta dentro de mim. Perdoai-me a minha tristeza!
Fez-se noite: perdoai-me que se fez noite!
Assim falou Zaratustra.
Friedrich Nietzsche, in Assim falou Zaratustra

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