domingo, 6 de setembro de 2020

O brinde

Ergueu o cálice
e esqueceu o brinde.

No avô,
suspendeu a família o ansioso olhar,
mas palavra e gesto lhe quedaram imóveis,
morcegos presos
no último teto do mundo.

Parecia que iria ficar assim
o resto da vida:
à espera de um motivo para brindar.
E nessa espera
demoraria o tempo todo.

Quando já morto,
tentassem tirar-lhe o cálice,
não seria possível abrir-lhe os dedos.

Levaram o avô
para o quarto,
e deixaram-no só, no escuro,
para que adormecesse.

O avô está cansado, disseram.
E, deste modo,
a si mesmos se descansaram.

O velho sorriu,
em seu enrugado rosto
desenhou a taça da malícia:
o que ele queria
era o instante do tempo inteiro.

Não entenderam os parentes:
calado, ele não estava calado.
A sua palavra
de nenhuma voz carecia.

De si para si, murmurou:
só amei o que tinha fim
e tudo que amei se eternizou.

Depois, adormeceu.

Aos parentes,
para sempre escapou
a razão do suspenso brinde.

Ninguém sabe falar a quem ama.

Apenas no silêncio
o amor
se diz e escuta.
Mia Couto

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