Salve,
Regina, mater misericordiae, vita, dulcedo, spes, imensa doçura,
salva e vem. Vem e abafa a vida, a roupa, a sala e o fogão, abafa a
espera com teu doce bafo. Ampara a vela, acende o fósforo, concentra
o ar, protege da aragem a chama da vela até ele vir. Abafa o som,
protege o som da ira dos inquilinos até ele tocar. Esconde-te
invisível, acocora-te, vita, advocata, mãe suprema, minha Regina,
para que não me deslargues, não desesperes, não me desconfines.
Porque esperas? Abre as asas e protege já, protege de seguida,
protege contínuo, sem intervalo, sem desfalecimento. Protege desde
hoje, desde ontem, desde as duas, desde as dez da noite, desde as
cinco, protege baixo, protege alto, protege depois, protege ora,
dentro de dois minutos, daqui a duas horas, protege à tarde, et
nunc, et sempre, et amanhã, et seculorum, bem como agora e na hora
da nossa morte, ámen.
Protege-a
bem.
Protege-a
a ela e ao marido dela. Protege o marido da porteira até às sete.
Porque ele trabalha na oficina até às cinco, ainda que a oficina só
feche às sete, às vezes às dez, por vezes nem feche, e muitos
fiquem a trabalhar pelo fim da tarde e pela noite dentro. O marido da
porteira sempre larga às cinco. Ao quarto para as cinco, ele arruma
o guardanapo e a marmita dentro da pasta e sai, mas só chega às
sete. Claro que ele precisa de proteção, antes, depois e durante,
porque sempre se está em perigo numa oficina-auto. Imenso perigo
porque tem de se deitar sob carros inteiros e peças resvaladiças, o
corpo completo no chão, a cabeça sob os motores, os olhos sob as
alavancas mais perigosas. Rojar-se em grandes manchas de óleo que o
sujam e o penetram do cheiro da oficina. Ele faz bem não continuar
depois das cinco, por causa do perigo. Mas deveria vir logo para
casa, trabalhar na gaiola dos pombos, folhear uma revista ou seguir
uma série. Dormitar simplesmente no sofá do hall que ela
transformou em saleta e a que chama sala. Aí bem poderia ele
dormitar antes do jantar, e não estaria em perigo. Mas não, entre
as cinco e as sete, o marido prefere passar em sítios que a porteira
nem nomeia, e sair de lá com os olhos cheios do brilho do vidro.
Como se o que se espelhasse nos olhos do marido fosse a vasilha, não
o vinho. Além disso, o marido da porteira tem um vinho ereto, porque
quanto mais toma mais perfila as pernas, a coluna e o corpo todo. O
que, em princípio, deveria não constituir um perigo, mas constitui.
Com as pernas desse modo esticadas, fica sujeito a bater com a cabeça
numa esquina, a encalhar num lancil, a esfacelar um braço, a ir de
encontro a um carro e ser atropelado.
Antes
ficasse bambo como os outros. Imaginar a cara do marido sob uma roda
em andamento provoca uma angústia vespertina na porteira. Por isso
mesmo ela chama a Regina para lhe tirar a angústia e proteger o
marido, antes de a proteger a ela e à casa. Proteger o trajeto, a
porta, a casa, até ele vir e depois de ele vir, às sete. Mas há
noites em que o marido não chega às sete, nem às oito, nem às
nove. E se não chegar até às dez, ela sabe que não chegará senão
de madrugada. É por isso que a hora crucial da vida da porteira
acontece entre as cinco e as sete. É dentro desses minutos decisivos
da tarde que se dita o dia e a noite da porteira. A porteira, aos
cinco para as cinco, acende a vela, põe as mãos pedindo que ele
chegue antes do jantar. Uma maçada se ele só vier de madrugada. Já
ela o ouve tocar, depois subir, abrir a porta do elevador com
dificuldade, sair de lá lentamente com o pé rígido, e depois a
chave começa a cair junto da porta, sente levantá-la do chão, deve
estar a revolver a chave, até que por fim ele a enfia, a roda, a
desprende, a saca, fica dentro de casa e a casa se enche do seu
hálito até às bacias e às janelas. Tropeça no sofá da saleta e
chama – Lúcia! Ó Lúcia! E o chamamento atravessa as
paredes do pequeno décimo, contíguo às chaminés e às antenas,
aos escoadoiros da chuva, e se propaga ao interior de todo o prédio,
e à varanda onde a porteira na realidade já está escondida, atrás
das gaiolas, e protegida pela mão invisível da Regina. Com o
coração a bater, Rex, Rex. A porteira escondida atrás do pombal
clandestino da varanda, antes da madrugada. A bater, a bater, o
coração descomposto da porteira. Rex e Regina, venham e salvem a
porteira, salvem-na de madrugada, salvem-na acocorada no trono do
pombal, com a cabeça sob os panos, no alto do seu mundo. No alto do
grande mundo da madrugada. Salvem-na deste mundo, levem-na no escuro,
tratem-na com doçura enquanto se esconde. Mater misericordiae, abre
as asas, abafa o som do coração da porteira, apaga da vista do
marido dela a luz que possa iluminar o ângulo escuro onde a porteira
está escondida. O marido anda junto do pombal, passa hirto, com as
mãos tensas, apalpando o que não vê, não a vê nem lhe toca,
passa e vai. Alguma coisa nele chama alto e grita à procura dela. E
a madrugada calada resplandece de luz frouxa e de doçura, no alto
dos prédios.
Aliás,
também a porteira tem imensa doçura. É com a voz muito doce que a
porteira ao cair da noite se põe a chamar à janela pela Regina,
cantando como o padre Romão canta para atingir o coração do Rex
através da Regina. Pela salvação do mundo. Mas não canta alto
como o padre Romão canta, movendo com as mãos a voz do coro. Pelo
contrário, ela canta baixo, às vezes só move os lábios à janela
para não atrair a ira dos inquilinos. Ainda que saiba que, se
cantasse alto, melhor atingiria o ouvido da Regina. Mas não, a
porteira aceita que o seu pedido seja cantado baixo. É que o prédio
é alto, o barulho da rua, intenso, e mesmo assim, vem logo um recado
pedindo que não cante a porteira na varanda. Há sempre alguém
querendo dormir intensamente ou concentrar-se sobre um assunto. Há
um aviador com horas perdidas querendo recuperá-las, um médico que,
na noite passada, fez um serão noturno do tamanho de dois
corredores. Dois advogados lutando, com a imparável cabeça dos
advogados, entre a lei e a infração, vigiando a vigília. Não os
pode perturbar. Só mexe os lábios – Regina, misericordiae. No
nono andar há um recém-nascido com cólicas, no oitavo, um ancião
que acabou de ser operado, gente querendo absoluto silêncio quando
chegam as dez da noite. Ela não vai, por sua causa particular,
incomodar tanta gente que logo abriria a janela reclamando o
chamamento da porteira ao invocar as roupagens da Regina, doce,
dulcedo.
Ainda
que o devesse fazer desde o momento em que, na oficina-auto, o marido
começa a arrumar a marmita na pasta, quinze para as cinco. Não o
fez por respeito e determinação. Mas há dias, toda essa gente que
tanto precisa dormir e vigilar em sossego, sem jamais se entender nem
ver nem precisar de se reconhecer, parece ter-se entendido e
combinado. A porteira não pode esquecer. Primeiro foi o advogado. O
advogado do quinto, simulando um recibo perdido, chamou-a para lhe
dizer que, se ela desejasse separar-se do marido, ele mesmo
asseguraria a papelada da separação. Esclareceu, com o recibo na
mão, como era só uma questão de papéis. E dobrou por fim o recibo
para demonstrar a facilidade com que se dobrava um papel sob o vigor
da lei. Bastavam umas testemunhas, mas, segundo o advogado do quinto,
em cada andar do prédio havia duas pessoas dispostas a testemunhar
pela porteira e pela lei. Também o médico. O médico do segundo
andar encontrou-a como por acaso e disse-lhe, sem qualquer preâmbulo,
que lhe passaria os atestados de que ela precisasse para mostrar em
tribunal, reforçando a ideia de que de facto tudo era uma questão
de papéis. Levava na mão a asa duma pasta, mas era como se também
tivesse um recibo e o dobrasse diante da porteira. O médico do
segundo estava à disposição da porteira. Contudo, mais
esclarecedora tinha sido a assistente social do terceiro, naquele
mesmo dia. Chamou-a para lhe falar de direitos, com a veemência com
que habitualmente se fala de deveres. Tudo isso, desabridamente,
entre portas. Aí a porteira entendeu que se haviam congregado todos
contra o seu homem e perdeu a doçura, nesse dia mesmo. E perdeu a
doçura porque um homem é um homem, spes nostra, ad te clamamus,
Rex, Jessus, benedictus fructus ventris tui nobis post hoc exilium,
ostende. E assim sucessivamente. Isto é, um homem é um homem e um
sacramento ainda é mais do que um homem porque esse é uma liga
entre dois e nem parte dele perece na Terra. Oh, vita, dulcedo!
Com
o balde entre portas, nessa hora do dia, a porteira perdeu a doçura
sem o mostrar, exatamente porque era doce. Era, e pôs-se a pensar
sentada na cama, diante da vela por acender, que os habitantes
daquele prédio de que era porteira lhe estendiam um tapete de
negrume e solidão. Pensou como, para além do sacramento, seria
triste a vida de porteira sem um marido que viesse da oficina-auto
com o seu fato-macaco por tratar. Com quem ralharia, por quem iria ao
talho, de quem falaria quando fosse às compras, para quem pediria
proteção quando cantasse à janela por Salve Regina, a quem
pertenceria quando os domingos viessem, e cada mulher saísse com seu
homem, se ela nem mais teria o seu. A vida pareceu-lhe completamente
absurda, como se todos se tivessem combinado para lhe arrancarem
metade do corpo. Se, mal tinha deixado de ser criança, já procurava
um homem, era porque de fato metade de si andava nesse homem desde
sempre, por vontade de alguma coisa que o sacramento elevara mediante
uma cerimônia. E agora, de repente, um conselho desses. Pensava a
porteira, com a vela apagada, sentada na cama. Que ideia triste
aquela de a assistente social dizer que uma mulher é um ser
completo. Diante da vela. E quem atarraxava as lâmpadas do teto?
Quem tinha força para empurrar os móveis? Quem espantava os ladrões
de carros com dois tiros para o ar, do alto da varanda? Quem
desarmava a cama, empurrava o frigorífico, consertava o carro quando
avariava, reclamava o criado com voz grossa quando saíam a comer
caracóis à beira-mar? Quem enfrentava os polícias quando na
estrada faziam paragem? Quem conduzia e percebia as coisas do
carburador? Quem? Quem? Que papel imprescindível, que pessoa
necessária na vida da porteira. Para além do sacramento. Além
disso, o seu homem tinha um bom caráter. Primeiro, porque fora da
bebida nunca tinha querido bater nem matar, como tantos há. Depois,
porque sempre podia ralhar com ele, que nunca ele respondia como
tantos respondem. E o dinheiro? Que sorte tinha com o dinheiro. Ela
era o cofre de tudo, com exceção do dinheiro que ele gastava quando
ficava por lá, e como esse não chegava a vir, infelizmente, ela não
podia amealhar. De resto, ela escondia o dinheiro onde ele nem sabia,
e ele nem lho pedia nem queria ver. Quantos, por contraste, não
passavam para as mãos das mulheres nem uma moeda, falsa que fosse.
Não o seu marido. Ela é que o vestia, ela é que determinava a
comida, ela é que o mandava pôr os pregos, ir buscar os pombos,
alimentar os pombos. E ele calado. Os inquilinos não viam isso. E
podia entregar-se à devoção. Quantos mais, naquela paróquia,
deixavam que a mulher se entregasse à devoção? Havia até os que
desconfiavam do padre Romão, e iam espreitar, e até proibiam as
mulheres de fazer coro, perseguindo-as como no tempo dos Romanos e
das catacumbas. Ora o marido da porteira nunca procedera assim. Pouco
se ralava que ela fosse ou que viesse. Ficava dando grandes
marteladas nas tábuas, fazendo gaiolas, raspando a sujidade dos
pombos no terraço. Que importava então que voltasse com os olhos
mais luzidios, e que, de vez em quando, a chamasse daquele jeito,
estendendo o seu nome de Lúcia com um brado, perseguindo-a? Era só
aquele instante em que gritava na sala da televisão, e enquanto a
procurava pela varanda, ao todo uns quinze minutos de sobressalto.
Depois, ele entrava em casa e, com as pernas abertas, caía no chão,
perdia a rigidez das pernas e dormia, no meio da casa para onde ela
voltava. Restava, pois, pedir pela casa da porteira. Que lhe
retirasse o hálito, o ar, o álcool, o bafo, o sopro cardíaco
daquela casa, o rouquido da pessoa caída no chão. De tarde haveria
de acender a vela, mover os lábios, invocar ad te suspiramus
gementes et flentes, advocata nostra, ergo, misericordes oculos ad
nos converte. Ela pede.
Vai
pedir. E a Regina se ergue, poisa, desce sobre a casa, cada dia uma
vitória do céu sobre a terra, do espiritual sobre o mundo, a
porteira sabe, nunca dará um passo para se separar do marido.
Pensando nisso, chega a sentir um sentimento incristão. Apetece-lhe
cuspir contra o conluio dessa gente. Quanta conversa não terão
feito sobre a sua vida para terem ido tão longe, sobre ela, que
nunca se mete na vida de ninguém. Ainda por cima, tinham-lhe falado
como quem concede e dá uma prenda, ou faz uma surpresa. Não, na
verdade não queriam ajudar a porteira. Esse sentimento diante da
vela é tão esclarecido que ela experimenta uma nova coragem. É
como se de repente sentisse uma força sobre-humana vir de dentro
dela, sem precisar do auxilio da própria Regina. Está sentada, está
esperando, vai ficar assim, cheia de força, sozinha, aguardando as
cinco, as seis e as sete. Aguardando as oito e as nove. Ali mesmo.
Não fugirá para o terraço, não permitirá que ninguém lhe oiça
os passos, nem correrá diante dos brados do marido, Lúcia, ó
Lúcia, aqueles gritos que ele dá, alvoroçando o prédio. Ela
mesma estará junto da porta, e ele não precisará de chamar, porque
a verá antes de qualquer outro objeto da casa. Ele há-de
enxergá-la, mal entre. Com jeito, ela há-de acalmá-lo, em
silêncio. E há-de correr a descalçá-lo para que as passadas sejam
abafadas, há-de ampará-lo na queda para que se debruce sobre o sofá
e não caia no chão. Há-de calá-lo, embalá-lo, desvalê-lo,
retê-lo junto de si com voz baixa, massajar-lhe as pernas,
esfregar-lhe as mãos. E assim, chegue ele quando chegar, ela estará
numa espécie de paz. Ninguém ouvirá, ninguém correrá persianas
pela sua chegada, ninguém mais se meterá na sua vida. Que mudança!
Pensando nessa doce mudança, quase se deixa dormir. Se ele vier na
volta da madrugada, até mesmo se já for dia, ela lhe dirá – Ah,
como nos quiseram separar! Ainda tremo, marido! E assim, pode
deixar-se dormir no sofá da sala, mesmo sem Regina. Que rápida
passa a noite, quando se tem um pensamento bom. Como passa rápido o
próprio sono da porteira. Devem ter-se avariado todos os relógios,
porque passou sem dar por passar. Já o marido vem. Exato. Já tocou,
agora subiu, agora rodou a chave, já caiu, já apalpou, já abriu a
porta e ela já está a pé. Marido? Tal como ela pensou, ele parece
estupefacto por vê-la. Parado entre as portas, com os olhos bem
abertos a olhá-la. Marido? Ele avança na direção do interior da
casa e senta-se devagar sobre o sofá. Sem dizer Lúcia, com os olhos
eminentemente abertos. Depressa ela lhe tira os sapatos, esfrega-lhe
as mãos, massaja-lhe as pernas, o marido parece estar a viver a
maior surpresa alcoólica da sua vida. Debruçado, inerte,
deixando-se trabalhar, mover e conduzir, com os olhos deslumbrados,
estupefacto. Ele mesmo levanta os braços para que a porteira os
dispa. Tudo sem ruído, sem aquele grito por Lúcia pelas empenas do
prédio. Sem arrastar nenhuns sapatos, sem espancar nenhum móvel.
Vejam como ele se vira, como o seu cabelo curto de homem lhe cai pela
testa, como é bonito o lábio roxo do marido, sem som, só bafo. Ela
até gosta do bafo a óleo e a álcool. Vejam como ele procura o
casaco, como se senta na cama sem o menor ruído. Como procura nos
bolsos. Mesmo a chave que cai não faz barulho, como numa cena
longínqua, aproximada, a que se tirou todo o som. Como acende o
isqueiro, como os olhos dele brilham sem ruído sob o isqueiro aceso.
Lambe os lábios sob a chama, o marido da porteira, sem ruído. Nem
ela produzirá uma única palavra. Será muda durante a noite, ela, e
as paredes dela também serão mudas para que jamais alguém se
atreva a insinuar uma vingança forçada, uma separação
desventurosa, um desquite profano. Mater, misericordia, advocata
nostra. Mesmo que ele lhe aproxime o isqueiro da cara e lho passe
pelo cabelo. Ela se afastará do isqueiro. Porque não a comovem. De
facto, todos os inquilinos, médicos, advogados, anciães,
recém-nascidos, aviadores, assistentes sociais, trabalhadores por
conta própria, por conta de outrem, patrões, criadas, podem dormir
descansados. Não a demoveram. Afinal o que o marido queria não era
incendiar-lhe o cabelo, mas apenas acender a vela. Com os olhos
abertos, sem ruído. Oh, vela! Mater, vita, dulcedo, em silêncio
como a noite quer, arde a vela. Deve-se apagar a luz, deixar que a
vela brilhe no escuro da noite. Também ele se sente atraído pelo
brilho da vela, direita, ateada. Ele toma a vela, traz a vela, traz a
vela do Rex e da Regina até junto da porteira, puxa-lhe a roupa,
aproxima a vela da camisa de nylon , com brilho e em silêncio.
Ateia. Ateou? Ateou a camisa?
Ela
vira-se, sai da cama, esfrega-se na parede, o fogo primeiro não
alastra, depois de repente alastra, cola, passa ao cabelo, ela
remove-se no chão, na carpete da sala, junto da porta, ainda abre a
porta, mater, vita, ó doçura, ventris tui nobis post hoc exilium,
ostende! Ó clemens, ó pia, advocata, em silêncio, dulcis Virgo
Maria! A porta está aberta para toda a chama. A chama da porteira
sai pela escada de serviço abaixo, correndo sem ruído até ao
oitavo, ao sétimo, ao sexto. Só no quinto a chama da porteira para.
Crepita. É a porta do advogado do quinto. Sem barulho, fica à porta
do advogado, das testemunhas e da lei. A Regina assim quer que fique.
Regina acocorada sobre ela, no quinto, de asas abertas sobre o
quinto, e o marido no décimo. Ainda terá a vela? Abre as asas,
advocata, levanta voo, leva a porteira, condu-la na maca, ergue-lhe a
vista, Regina, separa-a definitivamente da cama, do balde e do fogão.
Separa-a dos dez andares que o prédio tem, separa agora, et nunc, et
sempre, et séculos, das janelas abertas, cheias das silhuetas dos
inquilinos lilases e brancos pela fúria da última doce madrugada.
Levem-na, Regina e Rex, com vossas quatro mãos, vossos quatro pés,
deste lacrimarum valle, eia ergo, ad nos converte. Levem-na sem
ruído, sem sirene, sem apito, sem camisa, sem cabelo, sem pele, post
hoc exilium, ostende.
Lídia
Jorge, in Antologia de contos
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