sábado, 5 de setembro de 2020

Hóstias

Quando eu era pequeno minha mãe me levava à missa todos os domingos. Na missa, acho que no fim, não me lembro bem, eu ia até a beira do altar e o padre colocava uma hóstia na minha boca. Antes de chegar à igreja — nós íamos a pé, a igreja ficava perto de casa — minha mãe dizia várias vezes “você não pode morder a hóstia, você não pode morder a hóstia, se morder a hóstia, quando morrer pode ir para o inferno”, e enquanto dizia isso ela apertava o meu ombro com força. Minha mãe era uma mulher grande, gorda. Ela era magra e ficou gorda depois que o meu pai morreu. Eu ficava apavorado na hora da hóstia, suava tanto que o suor pingava do meu nariz e molhava o banco onde eu estava ajoelhado. Quando o padre colocava a hóstia na minha língua, eu fechava a boca e tinha vontade de morrer. A hóstia demorava muito tempo para derreter na minha boca, era um horror.
Meu filho, dizia minha mãe, existem pessoas que discutem qual a melhor maneira de receber a comunhão. Preste atenção, menino, a hóstia tem que ser recebida na boca, na boca, e não na mão, como dizem alguns hereges. Outra coisa, meu filho, precisamos ter cuidado com a presença e a atividade das seitas satânicas. Elas praticam um ritual de culto a Satanás, ao qual atribuem uma transcendência mística, mas tudo não passa de magia negra. Cuidado, meu filho, muito cuidado.
Na verdade eu mal prestava atenção ao que ela dizia, pois não entendia nem a metade.
E quando minha mãe cismava de ir à igreja da Penha o meu pavor aumentava.
Meu filho, estamos no final de outubro. Temos que participar dos festejos da padroeira da Penha. No domingo vamos à missa e para demonstrar o nosso amor a Jesus vamos subir de joelhos os 365 degraus da escadaria da igreja. Depois de assistirmos à missa e recebermos a hóstia nós vamos comer os doces (minha mãe adorava comer doces) e os salgadinhos das inúmeras barracas armadas no gramado em volta do morro e ouvir os músicos tocando aquelas coisas lindas.
Até hoje tenho os joelhos avariados por aquela subida. E minha mãe, para conseguir subir aquelas centenas de degraus, na metade do trajeto apoiava o peso no meu ombro. Era só uma vez por ano, mas o suficiente para me deixar estropiado.
Minha mãe ficou diabética. Fui com ela ao médico. Depois do exame de sangue o médico disse que ela estava diabética, uma doença metabólica, o exame constatara um alto nível de açúcar. A senhora tem que tomar insulina, o remédio que estou lhe recomendando, de acordo com esta prescrição. E tem que fazer uma dieta rigorosa, não pode comer açúcar em nenhuma forma, sob o risco de sofrer doenças cardiovasculares, doenças do fígado, úlceras nos pés... Eu não me lembro de tudo que ele falou, lembro que ele repetia as advertências de maneira enfática.
Porém a minha mãe era viciada em doces. Quando eu via um doce ou uma bala ou um chocolate eu jogava no lixo, pedindo, mamãe, pelo amor de Deus, não coma coisas doces, o médico falou.
Mas ela comia escondido de mim. E aconteceu o que tinha de acontecer: ela teve um enfarto fulminante.
Depois da morte da minha mãe eu continuei indo à missa todos os domingos. Aguardava ansioso o momento em que o padre colocaria a hóstia na minha boca. Mas era uma ansiedade diferente agora. Nem me importava mais com essa história de não mastigar. Eu estava viciado em hóstia, achava um verdadeiro néctar. Às vezes eu a deixava derreter na boca, outras vezes eu a mastigava. Ia à missa só para isso, para comer hóstias.
E frequentava várias igrejas, sabia a hora exata em que o padre dispensava a hóstia, o que felizmente não ocorria simultaneamente em todas elas.
Quando o papa anunciou que iria a Aparecida do Norte, eu também decidi ir.
Mas fui antes dele. Eu soube que estavam sendo fabricadas na basílica mais de 150 mil hóstias por semana. Elas estavam estocadas na capela do Santíssimo. E eram feitas com a melhor farinha de trigo.
Não foi difícil invadir, tarde de noite, a capela do Santíssimo em Aparecida. Entrei e enchi a enorme mala que carregava com hóstias e a mala ficou tão pesada que eu mal aguentava carregá-la.
Continuo indo a várias missas todos os domingos e comungando em cada uma delas, é claro.
No meio da semana como três ou quatro hóstias da mala que enchi em Aparecida. Mas sou econômico em relação às hóstias. Conforme os ensinamentos da Santa Madre Igreja, economia, uma palavra de origem grega, significa o uso prudente das coisas, incluindo alimentos.
Minhas hóstias de Aparecida vão durar muito tempo.
Rubem Fonseca, in Histórias curtas

Nenhum comentário:

Postar um comentário