Disse
o professor Danilo: “Existem pelo menos quatro tipos de sexo: o
jurídico, o anatômico, o gonádico e o psicológico. As palavras
macho, fêmea, homem, mulher são meros símbolos representando uma
realidade que não existe”.
Danilo
correu os olhos pela sala.
“Este
caso é diferente de um outro que trouxe aqui anteriormente. Mas o
problema era o mesmo: qual o sexo que nós vamos determinar, escolher
para o paciente? Sobre aquele caso eu não tinha dúvidas, porque ele
não tinha dúvidas. Você se lembra, Fernando?”
Fernando:
“Era um garoto inteligente. Me disse: ‘Se resolverem que vou ser
mulher eu me mato’”.
Danilo,
selecionando slides: “Ele me disse a mesma coisa. Dizia isso para
todo mundo. Sabia o que queria. Psicologicamente era homem;
juridicamente era mulher. Chamava-se Nair, que é um nome mais ou
menos neutro”.
“Ele
sabia para que tinha vindo aqui?”
“Acho
que os pais disseram.”
“Possivelmente
uns imbecis”, Duarte rindo.
E
Mírian, envolta em suas sombras (mundo pequeno este!).
“Possivelmente.
Mas você concorda que fizeram uma coisa inteligente registrando o
garoto como Nair; caso se chamasse Marlene, teria problemas quando
foi para o colégio, de calças. Ele exigiu calças, e os pais
concordaram. Talvez não fossem tão imbecis.”
“Ele
inventava coisas. Ajudou a nossa, a sua...”
“A
nossa...”
“A
nossa decisão”, disse Fernando.
“Este
caso é diferente”, Danilo. “Ela não.”
“Ela?”,
Duarte. “Isso significa —”
“Sei
onde você quer chegar. Não significa coisa alguma. Não posso dizer
it, ou das, a língua não deixa. E se deixasse também
não usaria.”
“A
última flor do lácio inculta e bela...”, disse Duarte. “O
doutor Roux —”
“O
doutor Roux fica para depois; você quer falar sobre o último livro
que leu, mas agora não.”
“Eu
quis estabelecer —”
“Depois,
depois. Mas perdi: onde é que eu estava mesmo?”
“Esse
caso é diferente...”
“Obrigado.
Esse caso é diferente. Mas vamos por partes.” Danilo projetou o
primeiro slide. “Aqui estão os órgãos genitais externos: pênis
e saco escrotal. O saco escrotal não tem testículos. O uretograma
provou a existência de uma estrutura vaginal. É um caso de
contradição entre a morfologia genital externa e a gônada; a
biópsia da gônada mostrou tecido ovariano normal. O teste da
cromatina, assim como a insuficiente elevação do 17-cetoesteroide e
ausência de depressão pela cortisona, não nos autorizam a dizer,
positivamente, que se trata de um caso de hiperplasia suprarrenal.
Por outro lado, não se trata de um caso de vero hermafroditismo,
pois não há demonstração de tecido testicular, conquanto exista o
ovariano.”
“Qual
o sexo do paciente? Juridicamente?”, Fernando.
“Feminino.
Morfologicamente, masculino; gonadicamente, feminino.
Psicologicamente, bem, este é o problema que faz o caso diferente:
nós não sabemos”, professor Danilo.
“Quantos
anos tem o paciente?”
“Nove.
Esse é outro problema, dentro do problema. A alteração da
genitália através da correção cirúrgica deve ser feita cedo.”
Mírian:
(Devem, mas não fazem. Mas podiam, Danilo podia ter feito.
Pergunto por que não fez, não sabia?, fugiu da dificuldade, não
quis correr o risco da alternativa de decifrar ou ser devorado? Devia
lhe dizer isso. Ah, ah! Antes perguntaria — sabe quem eu sou?
Lembra-se de mim? Sofre agora uma parte que seja do meu
sofrimento...)
“Quer
dizer que este caso nós poderíamos cirurgicamente fazer um homem ou
uma mulher, um ou outro, se quiséssemos?”, perguntou Duarte.
“Você
formulou a pergunta imprecisamente. Mas sei o que você quer
perguntar. A resposta é sim. Se soubéssemos.”
“Como?”
“Digamos
que depois de um diagnóstico cuidadoso nós optássemos pelo sexo
feminino. Nesse caso faríamos a amputação pura e simples do pênis
e do saco escrotal. A vagina seria construída. Seria fácil. É mais
fácil construir uma genitália feminina do que um aparatus genital
masculino. Não é difícil abrirmos um orifício perineal e
produzirmos uma vagina adequada.”
“E
se quiséssemos fazer um homem?”
“Íamos
para a laparotomia; extirpávamos útero e ovários. E como o saco
escrotal do paciente está vazio, colocaríamos nele dois testículos
de matéria plástica. Para fazê-lo feliz. Um homem para ser feliz
precisa ter uma genitália normal. Por isso os testículos de
plástico, que não permitiriam espermatogênese, mas dariam uma
sensação de normalidade.”
“Então
era só jogar a moedinha para o ar: cara, mulher, coroa, homem”,
Duarte.
“Na
medicina você não joga moedinhas para o ar.” (É um palhaço.
Que faço aqui, ensinando esse palhaço? Devo ensinar minha Arte,
como quer Hipócrates...?) “Você lê muito, já leu
Hipócrates?”
“Não
está um pouco ultrapassado? E por que não Galeno?” (Não leu o
Roux, vem para cima de mim com Hipócrates.)
“Galeno
também serve. Mas voltando a Hipócrates, que você não leu, ele
dizia mais ou menos isso: a medicina, entre todas, é a mais nobre
das Artes, mas, devido à ignorância daqueles que a praticam, está
atrás de todas as outras. Tais pessoas, diz ele, são como aquelas
figuras introduzidas no teatro que têm a forma, a roupa e a
aparência pessoal de um ator, mas não são atores; assim, também
médicos existem muitos em título, mas poucos na realidade”,
professor Danilo.
“Estou
de pleno acordo”, Duarte.
Fernando:
(O que que há com Danilo? Sempre que a Mírian vem ele fica
assim, amargo, nervoso, querendo brigar.)
“Mas
não devia”, disse Danilo. (Não adianta continuar. E terá esse
cretino o amor pelo trabalho, e a perseverança que permitirão que o
ensino, o meu ensino, propicie frutos abundantes? Estarei sendo
emocional? Esse sujeito me cansa.)
“Voltando
ao assunto. Esse caso é difícil, porque o paciente tem nove anos e
o gender role é para nós indefinível. Nós não sabemos o que ele
é psicologicamente.”
“O
paciente não diz o que ele acha que é?”
“Ele
não sabe o que é. O papel masculino ou feminino que a criança
assume é alguma coisa adquirida durante o curso de todas as
experiências e transações do crescimento. Chamo a atenção de
vocês para as observações da doutora Joan Hampson, num folheto que
distribuirei, sobre o gender role. O que somos em matéria de
sexo inclui o erotismo, mas é mais do que isto: inclui, por exemplo,
a roupa, o nome, o corte de cabelo, a postura, o gesto, os
maneirismos, afetações, devaneios, ilusões, ambições para o
futuro, mas é também mais do que isso. É o que os outros acham que
nós somos; é aquilo que nós achamos que somos — e é, ainda,
mais do que isso. Algo impresso irreversivelmente que nós precisamos
descobrir, pois o ser humano não pode viver com essa contradição
que vemos no nosso paciente. Existe a contradição social, moral, a
de caráter: a essas o homem sobrevive sem maior vicissitude. Mas à
contradição sexual é difícil resistir: é impossível ser feliz,
com ela. Essa matéria de sexo — esta palavra é semanticamente
imprecisa mas não há outra — o ser precisa ser definido.”
“O
que é preciso para um homem ser feliz, neste aspecto?”, Fernando.
“Ter
um falo adequado; acreditar que é homem; acreditar que os outros
acreditam que ele é homem; ter orgasmo, e, mais importante,
acreditar que pode fazer uma mulher ter orgasmo.”
“E
uma mulher?”
“Ter
uma genitália adequada; acreditar que é mulher; e acreditar que
pode, ou poderia, ter filhos.”
“Quer
dizer que para ser feliz o ser humano precisa estar em paz com as
suas ilusões?”, Duarte.
“Precisamente”,
Danilo.
Mírian:
(E quem não tem ilusões? Para com elas viver em paz ou em
guerra? E quem não tem dúvidas por falta de certezas?)
“Ser
macho e fêmea simultaneamente é impossível, se não se é
personagem de mitologia grega — e aí só se verifica o aspecto
erótico da dualidade — ou então ostra, ou drosófila melanogaster
—”
“Onde
o erotismo não se verifica”, Duarte.
“É”,
Danilo. (O taquipsiquismo desse cara vai empulhar muita gente;
pensarão que é inteligência. A minha paciência se esgota; estou
ficando velho; crio cismas, preconceitos? Fico cada vez mais cônscio
de minha ignorância e isso me desagrada. Mas não desagradava,
quando descobri isso, até gostava e dizia: quanto mais se sabe menos
se sabe, repetindo outros, que porém, como eu, na verdade diziam: eu
sei muito, ainda falta alguma coisa mas chego lá. Não chego; nem
sei o que falta, ao certo; nem sei aonde chegar. Queria ficar quieto,
num canto, pensando sem descobrir coisa alguma; nada de diagnósticos,
comunicações à Academia, nada de cumprir meu papel sociométrico.
E meus filhos? Esses estranhos a quem estamos presos pela inércia do
hábito. O ajudante do consertador de televisão me comunica que teve
um filho e eu, dentro deste contexto de erros e equívocos — a
posse da televisão, e, ainda pior, o conserto da televisão —, lhe
pergunto se ele preferia menino ou menina, e o sujeito me responde
que queria um filho; e eu pergunto por que e ele diz que um filho é
melhor que uma filha, que o filho continua a obra do pai.)
“Já
que tem de ser uma coisa, o que o senhor decidiu que ele vai ser?”,
Duarte.
“Ainda
não sei. Alguma coisa tem que ser feita. Alguma coisa tem sempre que
ser feita”, Danilo.
“Como
é que o paciente se veste?”, Fernando.
“Como
mulher.”
“A
convenção jurídica...”
“Mas
urina em pé.”
“Ah...”
“Seus
cabelos são longos...”
“Ainda
a convenção jurídica.”
“...mas
ele sonha que é homem...”
“Ah...”
“...mas
nos seus sonhos não existem mulheres, nem outros homens, só ele, e
se parece com o Moisés de Michelangelo, cuja figura viu num livro de
sua casa.”
“Com
barbas e tudo?”
“Tudo.”
“Interessante...”
“Tem
medo de raios e trovões. Mais de trovões... Não brinca com
bonecas, nem revólveres. Gosta de ler.”
“O
quê?”
“Sabatiní,
Delly, Karl May, mistura Tarzan com a Filha do Dono do Circo. Lê
muito. Não tem amigos ou amigas. É um ser quieto e tímido.”
“E
os pais?”
“Deixam-no
em paz e ele, ela, o paciente, não incomoda ninguém. É obediente.”
“Foi
examinado por psiquiatras?”
“Eles
dizem que não há nada errado com o paciente, a não ser um certo
excesso de introversão. Isso hoje. Temem o futuro, no entanto. Mas
nada decidem, fazem hipóteses, pulam de Freud para Horney para
Adler, e no fim querem saber o que diz o laboratório, o homem das
lâminas. Queriam ter tempo, observar mais, mas não há tempo; no
caso, o tempo é um inimigo, um veneno para o ser humano. O medo é
um veneno, e o ódio, e a frustração e a dúvida, e a estricnina.
Mas o pior de todos os venenos — sempre — é o tempo. Estou
parafraseando Emerson.”
Duarte:
(Não citaria Sartre nunca. Conheço esse tipo de pessoa. Só
acredita nos clássicos, os clássicos sobreviveram, passaram o
Grande Teste. Quantos anos são necessários? Cinquenta? Einstein
fica de fora. Cem? Freud fica de fora. Duzentos? Fora Kant.
Trezentos? Isaac Newton riscado. Quatrocentos? Descartes sem chance.
Onde é que eles param? Nos gregos.) Duarte
sorriu. (Eu também tenho uma cultura clássica. Hum, só
sei nomes e datas, mas não tem importância, todo mundo só sabe
nomes e datas, e epígrafes.)
Ainda
falta alguma coisa para o senhor decidir?”
“Depende
da definição, que ainda não sei fazer. Passamos a vida fazendo
definições: eu, você, e você — você (Mírian).
Definimos todas as coisas; definimos o bem e o mal, o falso e o
verdadeiro e achamos que somos livres porque podemos definir. Mas
ocorre que somos obrigados a definir e porque somos obrigados a
definir não somos livres. Essa definição, quanto ao paciente, eu
não sei fazer, mas acabarei fazendo-a e direi que não há dúvidas
de que se trata de um homem, vamos destruir suas características
femininas. Ou vice-versa.”
Fernando:
“Tudo que existe tem uma razão de ser. E se nada fosse feito?”
Mírian:
(O nada feito já foi feito. Pensa, Danilo, você já esqueceu?
Tem tantas marcas assim o meu rosto que você já não vê aquela —
aquele — aquilo?)
“Você
diz... ?”
“Se
não sabemos o que fazer, nada devemos fazer”, Fernando.
“Mas
temos que saber.”
“Sim.
Mas na hipótese de não sabermos é melhor não decidirmos.”
Danilo:
“Isto é anti-inteligência, anti-homem.” (E também o
descanso, o meu desejo fundo, que minha hipocrisia esconde.)
Mírian,
o lápis inteiramente mordido, a sensação de quem rasteja por um
túnel negro apertado de ar rarefeito: (Depois de nove meses de
vômitos, dores nas costas, inconforto, depressão, cistite,
hemorroidas, economia, algolagnia, a última angústia: medo. O da
mãe, o do feto, uma passando o medo para o outro; o do feto o grande
medo de todos: medo da vida. O da mulher, o medo da morte, vai
crescendo insuportável como o de alguém que se afoga — mas a
mulher é dura: e ocorre o alívio, feito de libertação e rejeição,
como se o feto fosse fezes há longo tempo reprimidas, como uma luz
rompendo o duro invólucro de escuridão que a envolvia, provando a
crueldade do ser contra o ser, a solidão de todos. Menino ou menina?
Galeria Uffizi. A Sala dell’Ermafrodita: reclinado, de olhos
fechados, Hermafrodita sonha; seu rosto de cisne deita-se sobre o
braço, seu corpo apoia-se sobre o joelho da perna esquerda
ligeiramente encolhida. As pernas, e o torso, e as nádegas são
feitos de frescor e imortalidade, chegam a ter paladar e som: de sua
mãe Afrodite. De seu pai Hermes: um falo macio, adormecido. On voit
dans le Musée antique, sur un lit de marbre sculpté, une statue
énigmatique d’une inquiétante beauté. Est-ce un jeune homme,
est-ce une femme? Une déesse ou bien un dieu? L’Amour, ayant peur
d’être infâme, hésite et suspend son aveu. Uma cópia do
original de Policles, diz o guia. Me olha: saberá? Menino ou menina?
O que dirão para a mãe, que começa a ficar em paz com o que jogou
fora, o corpo estranho que expeliu do seu corpo? Ela quer saber.
Vamos, Danilo, diga. Diga — não sei, e eles, pai e mãe, que armem
o seu segredo; só deles, uma cumplicidade de crime abominável.
Dentro do quarto trancado, como se escondendo um cadáver
esquartejado numa mala, a mãe muda a fralda do, da, oh! Meu Deus.)
O horror se abate sobre o coração de Mírian.
“Uiiiiii!”
O gemido de Mírian arrepiou os cabelos de Danilo. A sala ficou em
silêncio, todos imóveis inclusive Mírian que deitou a cabeça
sobre os braços e, em outras circunstâncias, pareceria estar
dormindo.
Danilo
põe os slides rapidamente numa caixinha. Suas mãos tremem. Ele
chegou a uma decisão, e tem pressa.
Rubem
Fonseca, in A coleira do cão
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