Rafael
abriu o portão e correu para a rua. Sentia-se sufocado, prisioneiro
de uma nebulosa espessa que o arrebatara e agora o levava para longe
daquela coisa medonha que ficara lá atrás. Entregou-se num
desfalecimento à viscosidade nevoenta e rolou ladeira abaixo. Não
podia saber o que era, não se lembrava, mas tinha certeza de que era
algo monstruoso, monstruoso demais, NÃO QUERO SABER! JÁ ESQUECI!...
A
nebulosa chocou-se de encontro a uma árvore e num gesto desvairado,
rasgando a névoa, Rafael precipitou-se para fora.
Arquejando,
os olhos esbugalhados, ele se apoiou na árvore. Passou as mãos
geladas pela face gelada. Meu Deus, meu Deus! Enxugou no punho da
camisa as lágrimas que desciam misturadas ao suor. Estava lúcido.
“Pronto...
passou”, disse baixinho, respirando de boca aberta.
Exausto
mas tranquilo. Espantou-se, agradável mente surpreendido: tranquilo,
sim, não era estranho? Essa tranquilidade depois do pânico,
umedeceu com a ponta da língua os lábios gretados. Olhou para trás.
Nunca
tinha corrido tanto, seis quarteirões de sua casa àquela árvore.
Ah,
se os velhos soubessem! O pai com a bigodeira eriçada, se segurando
para não gritar: “Você sabe, menino, você sabe que não pode
correr!” E aquele sabe pesado de significação. A mãe desolada,
concordando num eco: “Ora, filho, você sabe que não deve se
cansar.”
Rafael
endireitou o corpo. Apenou a boca obstinada. “Sei que tenho vinte
anos, ouviram bem? Vinte anos!” Sorriu para a formiga que subia
pela casca da árvore. “Só sei que tenho vinte anos, paizinho.
Cresci, compreendeu? E quero viver. Viver.”
Arrumou
a gravata torcida. Com os dedos abertos, alisou os cabelos
emaranhados. Não era o Afonso que vinha vindo? Afonso, sim.
Esgueirou-se
rápido para detrás da árvore. “Se me encontra nesse estado, vai
pensar que bebi.” abaixou-se e fingiu que limpava a barra da calça.
Mas
por que não queria ser visto? “Não quero. Preciso de uma razão
para não querer?” Afonso devia estar voltando da faculdade, mas
que dia era hoje? Quinta-feira? A última aula era de Direito Romano,
já passava do meio-dia, concluiu arregaçando a manga. Esquecera o
relógio em cima da cômoda. Apalpou os bolsos. Também os cigarros.
Abriu
os braços num espreguiçamento. Não, não queria fumar. Recostou a
cabeça na árvore. Na realidade, não queria mesmo nada. Queria
andar, isso sim, ir andando sem destino, um convalescente debaixo do
sol. Tão bom convalescer, voltar aos poucos ao dia-a-dia, verificar
que ludo continuava igual, as ruas. As casas. O sol. O jornal diria
que coisas terríveis estavam acontecendo lá fora e aqui dentro. Mas
agora não queria ler nenhum jornal. Hoje não “Que sol! Bruna,
Bruna, que faz você debaixo deste sol?...” Como era mesmo? Cântico
dos Cânticos, ela gostava de ouvir: “Amiga minha, como és bela,
como és bela! De pomba são teus olhos, por detrais do véu.” Tão
sensual. Quente. O poema e ela.
Hum,
até que a vida era boa. E se fosse vê-la? Muito cedo, ela dormia
até tarde. “Vá-se embora, filhinho, pedia abraçando o
travesseiro, quero dormir mais um pouco. Adoro dormir”.
Rafael
foi andando devagar, os olhos feridos pela luminosidade.
Beleza
de dia. Inclinou a cabeça oferecendo a cara ao sol, tão agudo o
desejo. Sentiu frio. Calor. Bruna. Bruna. Mas há quanto tempo não
se amavam? Duas semanas? Três?
Sem
poder ao menos avisá-la. “Bruna, estou doente mas irei assim que
melhorar, te amo como louco, como louco!” Um telefone, e se
telefonasse agora? Ela pediria que ele fosse vê-la imediatamente.
Imediatamente.
“E eu neste estado. Não quero que me veja assim, ainda não, vai
se preocupar, devo estar horrível!” Passou a mão pelo queixo.
Ainda
bem que fizera a barba, mas sentia sob os dedos a face afundada, ela
podia se assustar. Passou as pontas dos dedos nos lábios feridos
pela febre. Como poderia beijá-la com a boca desse jeito? Era tão
impressionável, ia querer chamar o médico, horror! Voltar à
engrenagem, laboratórios, exames. Outra vez? Mas por que se
preocupavam tanto com ele? Como se fosse um nenê. Riu. “Queridos
paizinhos. o nenê já tem uma amante. Ela é linda como um cabrito
montês, não estou exagerando, está na Bíblia que vocês têm na
cabeceira, as coxas, os seios...” Olhou em redor. Se tomasse a
direita, ia dar no parque. Vacilou. Quando ela ficava de pé,
formava-se uma carinha de anjo em cada um dos seus joelhos — como
podia ser isso? “Ah, também não sei, não tenho a menor ideia,
sei que a gente olha e vê um cada joelho a carinha gorda de um anjo
barroco, tão macio. Roliço...” Se o pai fosse do gênero
compreensivo, então sim, poderia pedir-lhe que a avisasse, dona
Bruna, meu filho está doente mas não é nada de grave.
Está
com muita saudade, irá vela assim que melhorar. Meus cumprimentos.
Rafael abriu o paletó. Riu em meio ao bocejo.
Cumprimentos
ou respeitos? Pois sim. A terra se abriria ao meio no dia em que
saísse tal frase sob a vasta bigodeira branca. “Sua mesada já
acabou?”, estranhara o velho no mês passado. “Curioso, antes
durava mais.” A mãe, timidazinha, limitava-se às
insinuações: “Elizabeth esteve aqui. Que joia de menina! Feliz de
quem se casar com uma jóia dessas.”
Jóia.
E se lhe desse umas argolas de ouro. Bruna gostava de argolas. Mas
quanto custaria isso? Se ao menos me deixassem trabalhar.
Um
homem da minha idade e vivendo de mesadas. Fechou as mãos
enfurecidas. Ridículo. Estava farto de ouvir os argumentos do velho.
“Sua
saúde é frágil, filho. E você é extravagante demais. Trabalhando
e estudando como estuda, quando é que vai poder descansar, quando?"
A mãe concordava, constante no seu alvo: “Você tem voltado tão
tarde, filho! Eu gostaria tanto que se firmasse com alguma moça,
tanta moça boa em redor... Você não pode continuar assim”
“Posso!” E Rafael parou como se os pais tiverem rompido em sua
frente. Chegou a gesticular: “Posso me casar com Elizabeth, posso
mo casai com as 11 mil virgens e não abandonarei Bruna, é fácil
entender isso?” Perturbou-se. Olhou em redor. Ninguém. Bafejou nas
mãos.
Pressão
baixa, pensou estendendo as mãos para o sol. Teve uma expressão
enternecida ao abrir e fechar os dedos. O pai tinha esse mesmo
formato de dedos. As unhas de estátua, em Roma todas as estátuas
tinham esses dedos. Esforçando-se por parecer furioso mas sem
conseguir disfarçar a doçura dos olhinhos castanhos. Pensou na mãe,
ciumenta Amorosíssima, vigiando pela noite adentro. “É você
Rafael? Quer um copo de leite quente, filho?” Apressou o passo.
“Está bem. adoro vocês dois. Mas não vou deixar a minha romana
nunca”.
Vagou
pelo parque o olhar comovido. Sentiu-se observado pelas árvores, a
folhagem atenta inclinando-se à sua passagem, elas estão me vendo
como eu as vejo. Nos entendemos tão bem. Fez um movimento para
colher uma folha e não completou o gesto. Enfiou as mãos nos
bolsos. Como se a árvore tivesse perguntado, respondeu que não,
hoje ainda não estava muito brilhante. Fraco. Dolorido. Seria bom
esquecer tudo que fosse desagradável: a doença, a marcação dos
velhos, as argolas impossíveis... Vamos, só coisas positivas,
repetiu para si mesmo.
Levantou
a cabeça, Só pensar em coisas boas, que há coisas boas, coisas
deslumbrantes! O importante era isso, se entregar à vida. E a vida,
no fundo era uma verdadeira delícia: linha um casal de velhos que,
apesar de tudo, eram duas colheradas de mel. Tinha aquela flor de
amante, domani. Brunela, domani... A média fechada na
faculdade. E tinha ainda Elizabeth com suas trancas puríssimas,
quando quisesse uma esposa perfeita e filhos mais-do-que-perfeitos,
era só apertar a sua campainha. É aqui que mora Elizabeth, a
Intocada? Parou diante do banco de pedra. Gostaria de ter uma filha.
Assim como aquela, pensou quando a menina de vermelho passou correndo
pelo gramado. Chegou-lhe aos ouvidos a cantiga desgarrada das
crianças brincando de roda, Somos filhos de um rei!...
Recostou
a cabeça no banco. Esticou as pernas. “Somos filhos de um rei...”,
cantarolou baixinho. E depois? Quis ouvir ainda a cantiga mas as
vozes se calaram. Estranhando o silêncio, abriu os olhos. O sol se
apagara completamente e uma névoa densa baixava sobre o parque que
pareceu se distanciar, esmaecido, quase irreal. Descoradas e
transparentes, as arvores tinham perdido o contorno e agora as
pessoas também pareciam flutuar, os rostos gasosos, movediços como
se fossem de fumaça. A nebulosa. “Outra vez?”, gemeu Rafael
estendendo os braços na tentativa de rasgá-la. Sentiu-a compacta,
viscosa como o suor que agora corria de sua testa. Cobriu o rosto com
as mãos. começou a tremer. E o pensamento detestável veio vindo,
informe como a própria névoa, mas monstruoso, medonho, podia até
apalpá-lo como apalpava a própria cara, “Mas o que é isto!? Meu
Deus. o que é isto?” Escancarou a boca porque o ar também era
espesso, impregnado de um cheiro nauseante que o umedecia inteiro
como um líquido horrendo, pingando de algum lugar, pingando.
Afrouxou a gravata, não quero lembrar, não quero! Saiu cambaleante,
tentou reencontrar o parque através do muro gasoso, onde o céu,
onde? Além devia estar o verde da folhagem, a amada folhagem que o
reconhecera tão aconchegante como um ninho, onde, meu Deus, onde foi
parar? O vestido vermelho estava ainda há pouco ali no gramado!
Vermelho. Vermelho. “A coberta da Cama de Bruna é vermelha e a
boca, sim, domani, domani! Agora ela está dormindo, Bruna é
romana, tive dez em Direito Romano, res quer dizer coisa, res
é coisa... coisa... Aconteceu uma COISA!”
Vergou
o corpo para a frente numa convulsão. Tinha agora um estilete
descendo lento pela sua garganta num movimento de parafuso, já podia
sentir a ponta feroz tocando-lhe as vísceras, um pouco mais fundo,
mais fundo, mais. Tapou a boca para não gritar. Lágrimas
correram-lhe na face. “Meu Deus. meu Deus!” “Já está
passando”, disse entreabrindo os olhos. Procurou o lenço, não
encontrou. Relaxou os músculos. “Está passando...” Levantou a
cabeça e endireitou o corpo. Olhou ao redor, a névoa se dissipara
por completo, ah! O sol. Ressurgiu a cantiga num movimento de roda.
Que vivi e que se esconde debaixo de uma pedra... No banco mais
próximo, um mendigo cochilava. Sob a folhagem brilhante da figueira,
quatro mulheres tricotavam, vigiando as crianças que corriam
perseguindo um cachorrinho branco. Rafael alisou os cabelos.
Passou
furtivo as mãos na cara e olhou de novo as mulheres, teriam notado?
Não, provavelmente não e se notaram foram discretas, afinal, era
apenas um desconhecido que se sentira mal, talvez estivesse
vomitando. E dai? Pôs se a andar, afastando-se constrangido das
crianças que agora corriam na sua direção. A cantiga ficou
fragmentada.
Sentia-se
atordoado mas consciente. A vertigem passara o se o deixara exausto,
dera-lhe em troca uma misteriosa calma. Ficou olhando uma borboleta
amarela. Tudo podia ser perfeito como o azul daquele céu sem mancha.
Mas em algum lugar estava escondido o ponto negro, encravado lá no
fundo, bojudo e fluido como uma nuvem-nebulosa que Inesperadamente se
dilatava e descia para arrebatá-lo, sugá-lo com fúria até as
raízes. Devolvendo-o oco. Moído feito um bagaço, sim, o pontinho
monstruoso, memória escondida nele — ou fora dele? “Que foi que
aconteceu, meu Deus?! O que foi?”
Sacudiu
a cabeça. Não, não era loucura. “Antes fosse”, se surpreendeu
dizendo. Saiu do parque com a curiosa sensação de que as árvores
lhe estendiam amorosamente os braços verdes, para se despedirem? Ou
para retê-lo? Podia ir ver Bruna. Mas assim, amarfanhado, recendendo
ainda a uma crise de asma. Fechou o paletó. Asma. Ela estava farta
de saber que ele não era um asmático, era mesmo um... Estacou à
beira da palavra proibida. "Ela finge que não sabe." E
seus olhos se umedeceram. "Finge que não sabe." Haveria de
dar-lhe as argolas, nem precisavam ser de ouro, umas belas argolas
folheadas e Bruna se atiraria em seus braços tão contente. Daria
também um presentinho para os velhos, meias de lã pura ele, uma
água-de-colônia para ela, qual era mesmo o nome do perfume que a
punha eufórica? Podia dar até — por que não? — um ramo de
rosas para Elizaheth, a do amor silencioso. Tinha a mesada inteira na
gaveta, pois não tinha? Animou-se. Assim, todo o fervor no coração
contente de novo, ah! se pudesse reunir todos, todos juntos! o pai, a
mãe, Bruna, Elizabeth. Todo mundo de mãos dadas, cantando aos
gritos como as crianças. Somos filhos de um rei!
Fixou
o olhar apavorado na árvore da estreita ladeira que agora subia.
Aquela árvore... Na fuga, abraçara-se àquela mesma árvore, fora
nela que se recostara — mas por que estava voltando? Por que de
novo aquele lugar do qual fugira tão cheio de horror? Por que se
aproximava mais uma vez daquilo?! Se a COISA estava lá, à sua
espera?
Cambaleou,
apertando a cabeça, tapando os ouvidos, não quero saber o que é,
não quero! Voltou-se estendendo os braços para o caminho
percorrido, não!... E como nos sonhos, as pernas anestesiadas não
obedeceram ao comando. "Não quero saber..", repetiu
debilmente. E prosseguiu subindo, ladeira acima, deixando-se levar
com a miserável passividade de uma coisa que o vento carrega. Caiu
de joelhos, arquejante, a COISA acontecera próximo à sua casa.
Estremeceu. A COISA acontecera na sua própria casa!
Havia
gente no portão. Mesmo assim longe, reconheceu Afonso e mais dois
colegas. Pôs-se então a correr desabaladamente, agora tinha que
ver, agora era impossível voltar. “Meu Deus, o que foi?!”
Desgrenhado,
abriu caminho entre as pessoas que se amontoavam na escada e
enveredou pela sala. Cochichos. Espanto. Viu o pai, prostrado numa
poltrona, os lábios mais brancos do que os bigode, de pontas caídas,
pela primeira vez, caídas.
Rafael
teve um desfalecimento. Outra vez a névoa, mas agora sentiu-se leve
dentro dela. Desaparecera a dor, só aquela aflição, ah, tinha que
saber, foi com minha mãe? Foi com ela?... “Mãe!”, gritou
aproximando-se do grupo compacto de homens. Afastando-os com
brutalidade, deu com um caixão. Na sua frente estava agora um caixão
negro, de novo quis recuar, cobriu a cara. “Não. não!” Viu a
mãe entrar na sala amparada por duas mulheres, os olhos esgazeados.
“Rafael!”
Inesperadamente,
como se o puxassem pelos cabelos, ele debruçou-se sobre o caixão e
se encontrou lá dentro.
Lygia
Fagundes Telles, in A estrutura da bolha de sabão
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