sábado, 18 de julho de 2020

Lavoura arcaica - 4

Sudanesa (ou Schuda) era assim: farta; debaixo de uma cobertura de duas águas, de sapé grosso e dourado, ela vivia dentro de um quadro de estacas bem plantadas, uma ao lado da outra, que eu nos primeiros tempos mal ousava espiar através das frinchas; era numa vasilha de barro fresca e renovada todas as manhãs que ela lavava a língua e sorvia a água, era numa cama bem fenada, cheirosa e fofa, que ela deitava o corpo e descansava a cabeça quando o sol lá fora já estava a pino; tinha um cocho sempre limpo com milho granado de debulho e um capim verde bem apanhado onde eu esfregava a salsa para apurar-lhe o apetite; a primeira vez que vi Sudanesa com meus olhos enfermiços foi num fim de tarde em que eu a trouxe para fora, ali entre os arbustos floridos que circundavam seu quarto agreste de cortesã: eu a conduzi com cuidados de amante extremoso, ela que me seguia dócil pisando suas patas de salto, jogando e gingando o corpo ancho suspenso nas colunas bem delineadas das pernas; era do seu corpo que passei a cuidar no entardecer, minhas mãos humosas mergulhando nas bacias de unguentos de cheiros vários, desaparecendo logo em seguida no pelo franjado e macio dela; mas não era uma cabra lasciva, era uma cabra de menino, um contorno de tetas gordas e intumescidas, expondo com seus trejeitos as partes escuras mais pudendas, toda sensível quando o pente corria o pelo gostoso e abaulado do corpo; era uma cabra faceira, era uma cabra de brincos, tinha um rabo pequeno que era um pedaço de mola revestido de boa cerda, tão reflexivo ao toque leve, tão sensitivo ao carinho sutil e mais suave de um dedo; se esculturava o corpo inteiro quando uma haste verde — atravessada na boca paciente — era mastigada não com os dentes mas com o tempo; e era então uma cabra de pedra, tinha nos olhos bem imprimidos dois traços de tristeza, cílios longos e negros, era nessa postura mística uma cabra predestinada; Sudanesa foi trazida à fazenda para misturar seu sangue, veio porém coberta, veio pedindo cuidados especiais, e, nesse tempo, adolescente tímido, dei os primeiros passos fora do meu recolhimento: saí da minha vadiagem e, sacrílego, me nomeei seu pastor lírico: aprimorei suas formas, dei brilho ao pelo, dei-lhe colares de flores, enrolei no seu pescoço longos metros de cipó-de-são-caetano, com seus frutos berrantes e pendentes como se fossem sinos; Schuda, paciente, mais generosa, quando uma haste mais túmida, misteriosa e lúbrica, buscava no intercurso o concurso do seu corpo.
Raduan Nassar, in Lavoura arcaica

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