Eu
e Norma havíamos acabado de fazer amor e estávamos abraçados
conversando.
Quando
as pessoas são casadas há algum tempo, a partir desse instante cada
um vira para o seu lado e começa a dormir, como se uma obrigação
acabasse de ser cumprida. Mas eu e Norma éramos namorados recentes.
“Li”,
disse Norma, “um conto sobre a arte de andar em que o narrador, que
se intitula um andarilho, acredita que ‘ao andar pensa melhor,
encontra soluções para os problemas; solvitur ambulando, diz
para os seus botões; ou seja, andando resolve os problemas’. O
narrador do tal conto esclarece ainda que ‘em suas andanças olha
com atenção tudo o que pode ser visto, fachadas, janelas, cartazes
pregados nas paredes, letreiros comerciais, luminosos ou não,
buracos nas calçadas, latas de lixo, bueiros, o chão que pisa,
passarinhos bebendo água nas poças, veículos e principalmente
pessoas’. Eu, Pedroca, quando ando nas ruas, só olho vitrines. E
você?”.
“Eu?”
“Sim,
você.”
“Quer
saber? Não olho coisa alguma, vou pensando no meu trabalho e
evitando pisar em buracos. As ruas da cidade estão todas
esburacadas.”
É
claro que eu mentia. Eu olho todas as mulheres bonitas que passam
perto de mim, e esta cidade tem muitas mulheres bonitas. Gosto das
magras de seios pequenos que mal se destacam na roupa, e braços
finos, o bumbum redondinho e firme. Mas não ia dizer nada disso para
a Norma, ela é muito ciumenta.
Conheci
Norma na faculdade de filosofia, mas naquela ocasião só nos
abraçávamos e dávamos beijos apaixonados.
Quando
terminei o curso o meu pai me chamou e disse:
“E
agora, filósofo, vai fazer o que da vida?”
“Não
sei”, respondi sinceramente.
“Tenho
um amigo”, continuou o meu pai, “que é diretor de um banco
importante. Ele disse que arranja um emprego para você. Bem
remunerado”.
E
assim foi. Aceitei. O problema é que o emprego era em Brasília e lá
fiquei eu dois anos. Durante esse tempo eu escrevia diariamente
cartas de amor para Norma. “Meu amor. Morrendo de saudades de vc.
Bjs Pedroca.” Essas cartas da internet, ou melhor, esses e-mails,
são assim, enxutos.
Norma
tinha se tornado professora de filosofia. A nossa antiga professora,
Bela, convidara Norma para ser sua assistente e logo ela se tornou
professora titular. A Bela era lésbica e talvez tenha tido algum
envolvimento com Norma, mas isso não me incomodava, Norma podia
andar com mulher, com homem não. Seja como for, quando nos
reencontramos, e além dos beijos e abraços passamos às “vias de
fato”, notei que a Norma era virgem.
Mas,
como já mencionei, eu e Norma estávamos na cama conversando.
“No
conto”, continuou Norma, “o personagem relata a história da mãe
dele, ficção, é claro. Afirma que a mãe era um exemplo marcante
de que andar é preciso. Ela morava na praia do Flamengo e
diariamente andava alguns quilômetros pela orla, com a sua irmã de
criação, até os 94 anos de idade. Todos diziam que ela ia
ultrapassar o centenário. Um dia, dentro de casa, ela escorregou no
assoalho encerado, caiu ao chão e quebrou o quadril. Passou a andar
numa cadeira de rodas. Mas isso durante pouco tempo. Ela decidiu
morrer. E morreu, sem nenhuma causa aparente. Ela quis morrer porque
não podia mais andar. O marido, que não gostava de andar, sofreu um
AVC e morreu com pouco mais de sessenta anos”.
“Em
ficção você pode inventar qualquer história”, eu disse.
“Mas,
Pedroca, eu fiquei tão impressionada com esse conto que decidi
estudar os filósofos que gostavam de andar. Meu curso no segundo
semestre será dedicado a eles.”
“Quem
são essas figuras?”
“Pedroca,
não gostei desse tom de desprezo da sua voz.”
“Não
tem desprezo nenhum, meu amor, eu quero saber mesmo.”
“São:
Emerson, Nietzsche, Kant, Rousseau, Rimbaud…”
“Amorzinho,
esse último não era poeta?”
“Eu
sei, mas os poetas são tão importantes quanto os filósofos. Posso
citar os outros?”
“Claro,
meu amor.”
“Nerval.
Acho que vou parar nesse. Você quer ouvir um resumo do que vou
dizer?”
“Sim,
adoro ouvir a sua voz.”
“Emerson,
no seu ensaio escrito em 1858, “Country Life”, diz que o melhor
para a humanidade é andar, o que, poucos sabem, é uma arte. As
qualificações, segundo Emerson, são: resistência, roupas simples,
sapatos velhos, olhar a natureza, bom humor, grande curiosidade,
falar bem, saber ficar calado. E para isso a melhor companhia é um
cão.”
“Bacana”,
eu disse.
“Quem
também dava muita importância ao ato de andar era Nietzsche, o
famoso autor de Assim falava Zaratustra. Ele escreveu em um
dos seus ensaios que tudo que ele havia pensado e esboçado em
pequenos cadernos ocorrera enquanto ele andava. O outro foi Kant, o
autor da Crítica da razão pura. O problema de Kant era a sua
saúde. Ele tinha o ombro direito mais alto do que o esquerdo, era
cego de um olho e tinha uma constituição física muito delicada.
Apesar dos problemas de saúde, Kant sabia que andar era preciso. Num
dos seus livros podemos ler: ‘Já sei o caminho que vou trilhar.
Vou começar minha caminhada e ninguém vai me impedir.’”
“Formidável”,
eu disse. Mas, na verdade, não prestava a menor atenção ao que
Norma dizia.
“Rousseau
— Jean-Jacques Rousseau — nasceu em 1712 e morreu em 1778. Era
filósofo, escritor e compositor. Sua filosofia política influenciou
a Revolução Francesa. Sua obra Contrato social é importante
do ponto de vista político e social. Como romancista escreveu Émile,
ou A educação e Julie, ou a nova Heloise,
considerada a primeira obra romântica. E, com as suas Confissões,
iniciou a moderna autobiografia. Finalmente, Sonhos de um
caminhante solitário é o primeiro livro de literatura
introspectiva. Ele disse: ‘Nunca faço nada a menos que esteja
caminhando, o campo é o meu gabinete. A visão de uma mesa com
papéis, livros me dá náusea.’”
Esses
filósofos eram uns chatos, pensei.
“Não
posso deixar de citar Rimbaud”, continuou Norma. “Não que ele
seja um dos meus poetas favoritos, mas porque entre os poetas
provavelmente é o mais andarilho de todos. Como não tinha dinheiro,
ele se deslocava entre as cidades caminhando. Rimbaud nasceu em 1854
e morreu de câncer em 1891, aos 37 anos de idade. Teve uma ligação
amorosa com o poeta Verlaine, que largou a esposa e os filhos para
viajar com Rimbaud. Verlaine, um dia, já de volta à França, por
ciúmes atirou em Rimbaud, ferindo-o ligeiramente, mas acabou preso
durante dois anos. Mas isso não cabe aqui nesta história curta. O
que interessa é que Rimbaud era um andarilho e quando aos 21 anos
parou de escrever foi viajar pelo mundo e viveu algum tempo na
África. Certa ocasião, quando estava na Abissínia, andou, feliz,
dezenas de quilômetros por desertos pedregosos e montanhas. Rimbaud
sabia que andar era preciso”.
Porra,
esse poetas eram outros chatos, pensei.
“E
finalmente Gerard de Nerval, outro andarilho famoso, poeta romântico,
autor de La Bohème galante, Les Nuits d’octobre e de
uma interessante coleção de ensaios sobre Paris à noite, Lorely,
souvenirs d’Allemagne, mencionando as suas viagens pelo rio
Reno, que inclui também a Holanda e a Bélgica. Escreveu ainda uma
aclamada peça teatral, Scènes de la Vie Allemande. Em todos
esses lugares — Paris, margens do Reno, Holanda, Bélgica —
Nerval andou, ainda que caminhasse melancolicamente. Mas não importa
se o seu caminhar é melancólico, alegre ou triste. Andar é
preciso. Pedroca, querido, vamos andar um pouco? Não importam
nacionalidade, idade, sexo, saúde, se o sujeito é corcunda, anão,
usa uma bengala para caminhar. Andar é preciso. Vamos andar,
querido.”
“Norma,
minha adorada, prefiro fazer amor mais uma vez”, eu disse
beijando-a. E foi o que fizemos, a manhã inteira.
Essa
coisa de andar é para carteiro, pensei.
Rubem
Fonseca, in Histórias curtas
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