terça-feira, 23 de junho de 2020

Seu Ramiro

Naquele tempo os hóspedes fervilhavam em nossa casa. Na cidade ainda não havia hotéis, e à tardinha, ao chegar o trem, quase diariamente nos apareciam carregadores que transportavam bagagens. Sujeitos desconhecidos entravam, incerimoniosos, como se tivéssemos obrigação de recebê-los, ficavam dois, três dias, embarcavam de madrugada, sem agradecimentos, à socapa.
Minha mãe se arreliava, prometia uma desfeita àquela súcia de parasitas. Mas baixava a pancada, engolia a indignação, ia lacrimejar na fumaça da cozinha, à beira do fogo, rosnar o desgosto à criada e aos moleques.
Meu pai afetava paciência magnânima, não isenta de interesse. Calculista, é possível que enxergasse na hospitalidade matuta um emprego de capital. Alargara as transações, devia muito, e no inverno o dinheiro minguava. Sendo os intrusos em geral caixeiros-viajantes, fiscais dos estabelecimentos fornecedores, convinha suportá-los. Davam, em paga, bons informes do pequeno retalhista do interior. E indicavam-lhe negócios vantajosos, a compra de massas falidas, baratas. Nessas liquidações abundavam pregos de tamanho exorbitante, agulhas enferrujadas, chita de padrões horríveis. Ao cabo de anos os fregueses desconfiaram que todas as mercadorias tinham defeito, e os balanços apresentavam rumas de inutilidades.
Os cometas atraíram indivíduos alheios ao comércio e transformaram a casa em pensão. Entre estes, Seu Ramiro se notabilizou. Trazia o encargo de fundar uma Loja Maçônica, empresa odiosa e cheia de riscos.
Minha família não era rigorosamente cristã: fugia do confessionário, rezava pouco, ia à igreja com temperança, nas festas. Mas admirava as procissões, jejuava na semana santa e sabia perfeitamente que os pedreiros-livres dão sangue ao diabo, obtêm fortuna e condenam-se. O velho Pedro Rico, nosso parente afastado, procedera desse jeito e estava no inferno. Sem dúvida. Percorria a vizinhança dos lugares mal-assombrados, vagava pelos caminhos, galopando num cavalo negro, pedindo missas e gemendo:
Sou a alma do finado Pedro Rico.
Seu Ramiro percebia as dificuldades e foi cauteloso, não revelou de supetão os seus desígnios sinistros. Fez diversas viagens e, com persistência e manha, declarando-se religioso em demasia, iniciou uma propaganda tímida, fortaleceu-se, conseguiu prosélitos e inaugurou a loja Mensageiros da Pé, que teve como venerável o chefe político. Na estreia, pomposa, tipos sérios, de Maceió, declamaram longos discursos.
Meu pai esteve alguns meses cabeceando sobre cartonagens e folhetos marcados com triângulos e compassos. Guardou a princípio esses utensílios na gaveta, a chave; largou-os depois à toa, deixou-nos ver as abreviaturas enigmáticas, findas em três pontinhos. Enjoou as sessões secretas, e julgo que permaneceu em grau muito baixo, não passou de aprendiz.
Enquanto se aliciavam adeptos e se reconstruía um casarão triste no Gurganema, Seu Ramiro nos visitou com frequência. Era um sujeito espesso e moreno, de cabeleira grisalha, rugas, e ponderoso, tão ponderoso que dificilmente o imaginaríamos sem colarinho e gravata. A voz pausada gotejava, para não perdermos uma sílaba. Sobrancelhas hirsutas, olhar sereno e olímpico.
Tinha essa figura uns modos de estátua, a convicção talvez de que era estátua e devíamos admirá-la. Antes de quebrar o silêncio, fungava, contraía os cantos da boca, achatava mais a, nariz, tufava o bigode vasto. Ensinava-nos que o filipino é terrivelmente forte, conduz sem se cansar dois filipinos. Como as formigas. E descrevia a organização do formigueiro. Ninguém aludira a filipinos nem a formigas, mas o homem achava meio de lançar mão desses viventes e dissertava.
De ordinário isso acontecia depois do jantar. Mastigada a refeição abundante e má, retirados os pratos, Seu Ramiro pregava os cotovelos na toalha, examinava as caras em redor e esperava deixa conveniente a uma exposição volumosa. Aprofundava as rugas, eriçava os pelos, engrossava o papo, inchava todo, discorria uma hora, e não havia brecha para nenhum aparte. Os dois caixeiros fixavam nele os bugalhos atentos; o patrão balançava a cabeça, em apoiados reverenciosos; minha mãe, a um canto da mesa, reprimia bocejos, mordia os beiços.
Foi nessas arengas que, entre avanços e recuos, surgiu o Supremo Arquiteto do Universo e produziu considerável efeito. Seu Ramiro falava no Supremo Arquiteto do Universo com devoção, erguendo-se um pouco.
Aborreci aquela sabedoria, a linguagem magnífica: habituei-me a fugir depois do café, espantando os ouvintes, fuzilado pelos óculos do orador, que, chamando-me à ordem, tentou punir-me o desrespeito. Leu no primeiro número do Dilúculo a minha história Pequeno Mendigo e censurou-me vários erros. Essa literatura, recomposta por Mário Venâncio, me parecia certa, mas Seu Ramiro discordou e corrigiu tudo de novo. Alterou a disposição das palavras, arranjou sinônimos vistosos, arrepiou-se vendo a minha personagem estender a mão à caridade pública: fê-la estender as mãos, pois não estava explicado que ela fosse maneta. Enfim uma crítica medonha, a pior que já recebi. Grande raiva me encheu o coração, mentalmente desenvolvi compridas injúrias, odiei os filipinos e as formigas.
E só me aliviei quando o monstro se ausentou, deixando uma lembrança deplorável. Enquanto os Mensageiros da Fé engatinhavam, Seu Ramiro, grau trinta ou mais, lhes ensinou as regras necessárias, as pancadas do martelo, os deveres de cada um. Findas as lições, espaçou as visitas, sumiu-se afinal. Meu pai emprestou-lhe cem mil-réis e perdeu-o de vista. Desiludiu-se, conteve imenso rancor. Certamente os irmãos deviam auxiliar-se, mas aquela maneira de arrancar auxílio era safadeza. Calou-se, roendo a indignação. Foi por isso, creio, que repugnou os três pontinhos, as brochuras misteriosas, ou triângulos, os compassos e o Supremo Arquiteto do Universo.
Graciliano Ramos, in Infância

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