sábado, 6 de junho de 2020

Mário Venâncio

Organizou-se uma sociedade teatral e quiseram colocá-la sob o patrocínio de João Caetano; mas o Major Pedro Silva, senhor de engenho, ofereceu aos amadores uma casa que se arruinava no Juazeiro, defronte da cadeia, e a instituição recebeu em conseqüência o nome de Escola Dramática Pedro Silva. Ladrilharam, rebocaram e caiaram o prédio; ergueram o palco, os cenários da floresta, do palácio e da choupana; Joaquim Correntão esmerou-se no pano de boca, vistoso, com três deusas peitudas. E, depois de numerosos ensaios, levaram à cena O Plebeu, que arrancou lágrimas da plateia.
Entre os diletantes, um moço desconhecido, novo agente do correio, logo se notabilizou pela feiura e pelos modos esquisitos. Mário Venâncio era pobre demais: vestia brim fluminense, roupa grosseira de matuto, preparava ele mesmo a comida e vivia numa espécie de gaiola pendurada no morro do Pão-sem-Miolo. A peça da frente servia de repartição, gabinete e sala de visitas.
Logo correu que havia chegado à terra um literato. Vi-o de longe, rápido e miúdo, o rosto fino como focinho de rato, modos de rato — um guabiru ligeiro e cabisbaixo, a dar topadas no calçamento. E alguém afirmou na loja que estava ali um sujeito profundo, colaborador de jornais, autor de livros, o diabo. As maneiras esquivas e torcidas exprimiam vida interior, desprezo ao senso comum, inspiração de poeta. Em geral os poetas tinham aparência maluca e usavam cabelos assim compridos, escondendo as orelhas.
Aproximei-me desse curioso indivíduo no colégio, onde nos apareceu lecionando geografia. Não era a especialidade dele: ajustou-se à matéria como se ajustaria a qualquer outra, apenas para aliviar o trabalho de Jovino Xavier. Pouco a pouco abandonou os mapas, as listas de mares e de rios. Insinuou-nos a fundação de um periódico.
A ideia, aceita com entusiasmo, ao cabo de uma semana esfriou, teria morrido se eu e meu primo Cícero não a resguardássemos. Aferramo-nos a ela e, vencendo embaraços e canseiras, tornamo-nos diretores do Dilúculo, folha impressa em Maceió, com duzentos exemplares de tiragem quinzenal, trazidos pelo estafeta Buriti, que vendia revista e declamava pedaços do Moço Louro. O desgraçado título foi escolha do nosso mentor, fecundo em palavras raras.
Estabeleceu-se a redação na agência do correio, logo convertida em asilo de doidos. À tarde reuniam-se lá os membros da Escola Dramática Pedro Silva, os da Instrutora Viçosense, sociedade que dormia o ano inteiro, acordava na posse da diretoria e, concluídos os discursos, tornava ao sono. Essa gente fazia um barulho que assustava os transeuntes, afligia os vizinhos, atraía caixeiros tímidos, emaranhados nos cipoais da concordância e da métrica. Sem apanhar direito o sentido das conversas, apoderava-me de alguns vocábulos, estudava-os no dicionário, empregava-os com energia.
Representado O Plebeu, Mário Venâncio colhera no guarda-roupa do teatro uma farpeia que utilizava em noites de inverno e por fim misturava ao fato ordinário. De tamancos, calça de algodão esfiapada nas bainhas, camisa de meia, fraque e chapéu duro, atravessava a rua, dirigia-se à bodega; as mãos carregadas de embrulhos, lenha debaixo do braço, voltava, corcunda, tropeçando, ia à cozinha, atiçava o fogo, temperava a sentava-se à mesa coberta de jornais, cartas, almofadas e carimbos, perto da estante:
O naturalismo...
Perplexo, eu examinava as pessoas em redor, procurava distinguir nelas o efeito da arenga difícil. Estariam compreendendo? Às vezes me assustavam discussões embrulhadas: rapazes silenciosos animavam-se, discorriam com exagero e ódio, religiosamente. Isso me dava tontura e enjôo. Uma idéia clara me surgia: os romances agradáveis eram bugigangas. Em troca, exibiam-me insipidez e obscuridade. Ali é que estava a beleza, especialmente na prosa de Coelho Neto.
Não me importava a beleza: queria distrair-me com aventuras, duelos, viagens, questões em que os bons triunfavam e os malvados acabavam presos ou mortos. Incapaz de revelar a preferência, resignei-me e aguentei as Baladilhas, o Romanceiro, outros aparatos elogiados, que me revolveram o estômago. Cochilei em cima deles, devolvi-os receando que me forçassem a comentá-los. Para mim eram chinfrins, mas esta opinião contrariava a experiência alheia. Julguei-me insuficiente, calei-me, engoli bocejos. Enquanto o dono da casa explanava a literatura encrencada, esforcei-me por entendê-la.
Senti medo e preguiça. Não me arriscaria a controvérsia: acovardava-me a presença de uma autoridade.
O Pequeno Mendigo e várias artes minhas lançadas no Dilúculo saíram com tantos arrebiques e interpolações que do original pouco se salvou.
Envergonhava-me lendo esses excessos do nosso professor: toda a gente compreenderia o embuste.
Mário Venâncio fabricava artigos e notícias, reduzia os diretores a simples testas-de-ferro. Ornou de contos sérios as páginas mesquinhas. Assim principiava um deles, admirado na Instrutora Viçosense e na Escola Pedro Silva:
Jerusalém, a deicida, dormia sossegadamente à luz pálida das estrelas. Sobre as colinas pairava uma tênue neblina, o hálito da grande cidade adormecida. Nos casais dos cabreiros, cães de vigília ululavam lugubremente.” Os nossos ouvidos eram insensíveis a colisões. E a brisa do monte das Oliveiras, a torrente do Cédron, lugares bíblicos, valorizavam o trabalho.
Mas não ficávamos na torrente e na brisa. Descíamos o monte das Oliveiras, caíamos na planície nacional, visitávamos a Casa de Pensão e O Coruja. Da cópia saltávamos ao modelo, invadíamos torpezas dos Bougon-Macquart, publicadas em Lisboa.
Feria-me às vezes, porém, uma saudade viva das personagens de folhetins: abandonava a agência, chegava-me a biblioteca de Jerônimo Barreto, regressava às leituras fáceis, reviu condes e condessas, salteadores e mosqueteiros brigões, viajava com eles em diligência pelos caminhos da França.
Esquecia Zola e Victor Hugo, desanuviava-me. Havia sido ingrato com os meus pobres heróis de capa e espada. Não me atrevia a exibi-los agora. Disfarçava-os cuidadoso e, fortalecido por eles, submetia-me de novo ao pesadume, ia buscar o artifício v. a substância, em geral muito artifício e pouca substância.
O funcionário postal facilitou-me a correspondência com livrarias: obtive catálogos da Garnier e da Francisco Alves, escrevi cartas, recebi faturas e pacotes. Não possuindo recursos, habituei-me a furtar moedas na loja, guardá-las num frasco bojudo oculto sob fronhas e toalhas no compartimento superior da cômoda. Entre níqueis e pratas surgiram cédulas — e enchi as prateleiras da estante larga, presente de aniversário. Esses delitos não me causavam remorso.
Cheguei a convencer-me de que meu pai, encolhido e avaro por natureza, os aprovava tacitamente. Desculpava-me censurando-lhe a sovinice, tentando agarrar esperanças absurdas.
Mário Venâncio me pressagiava bom futuro, via em mim sinais de Coelho Neto, de Aluísio Azevedo — e isto me ensoberbecia e alarmava. Acanhado, as orelhas ardendo, repeli o vaticínio: os meus exercícios eram composições tolas, não prestavam. Sem dúvida, afirmava o adivinho. Ainda não prestavam. Mas eu faria romances. Gastei meses para certificar-me de que o palpite não encerrava zombaria. Depois a vaidade esmoreceu, foi substituída por uma vaga aflição.
Que teria o homem percebido nos meus escritos? Se me decidisse a confiar nele, amargaria a vida inteira o provável engano. Examinei-me por dentro e julguei-me vazio. Não me achava capaz de conceber um daqueles enredos ensanguentados, férteis em nobres valorosos e donzelas puras. E, desatento, andava na rua aos encontrões, meio cego, meio surdo. Nunca descreveria um candeeiro como o de metal amarelo que iluminava, com azeite e difíceis pavios, duas páginas das Cenas da Vida Amazônica. Os candeeiros me passavam despercebidos. E seriam necessários? Os debates na agência não tinham fim. Lembrava-me dos governistas e oposicionistas espalhados, rancorosos, nas esquinas da cidadezinha e nos jornais da capital. Assombrava-me o partidarismo exaltado, a minha colaboração no Dilúculo era terrivelmente eclética. Mário Venâncio continuava a animar-me, eu desviava pretensões arriscadas.
Esse amável profeta bebeu ácido fênico. Levantei-me da espreguiçadeira, onde me seguravam as novidades e os sofrimentos da artrite e de uma novela russa, fui encontrar o infeliz amigo estirado no sofá, junto à mesa coberta de papéis, brochuras, pedaços de lacre, almofadas e carimbos. Um emissário da administração, feita a sindicância, redigiu necrológio pomposo, enterrou o cadáver sob a folhagem de salgueiros, entre raízes de ciprestes, vegetais desconhecidos no lugar.
O Dilúculo também morreu logo. Distanciei-me da crítica. E não me entendi com o público, muito incerto. No colégio, na Escola Pedro Silva, na Instrutora Viçosence, toleravam-me. Em casa, sem exame, detestavam as minhas novas ocupações.
Graciliano Ramos, in Infância

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