Minha
avó, quando me via triste, eu vivo triste desde pequeno, a minha avó
dizia “tristezas não pagam dívidas”, e até cantava uma música
popular dizendo isso. Ela era aleijada, andava numa cadeira de rodas,
tomava mil remédios, de manhã, de tarde, de noite, pílulas,
xaropes, injeções, e era uma mulher alegre. Ou seria fingimento?
Pena de mim? Na família éramos apenas nós dois. Minha mãe morreu
no meu parto, meu pai morreu de tanto beber, mas eu desconfio que ele
se matou.
Todo
domingo eu levo minha avó à igreja. Ela reza. Eu finjo que rezo,
ela ficaria muito infeliz se soubesse que o neto dela não acredita
em Deus, em santos, em rezas.
Eu
trabalho numa empresa de contabilidade. Sou um dos muitos contadores
que trabalham num escritório ordinário sem ar-refrigerado, e no
verão aquilo é um inferno. No fim do ano sou presenteado com um
peru, desses que são engordados com hormônios sintéticos. Jogo
aquela porcaria no lixo.
Não
tenho namorada. Elas querem se divertir. Mulher só gosta de homem
triste se ele for muito rico. Não pensem que sou misógino. Eu gosto
das mulheres, gosto de ir para a cama com elas. Mas só quem me atura
são as prostitutas.
Então
a minha avó morreu. Eu nem disse o nome dela. Maria da Graça. Ela
me contava a origem do seu nome mostrando uma medalha. Uma santa que
teve uma visão, os sagrados corações de Jesus e Maria, o de Jesus
cercado por uma coroa de espinhos e a arder em chamas, e o de Maria
também em chamas e atravessado por uma espada, cercado de 12
estrelas. Ao mesmo tempo a santa ouviu distintamente uma voz
dizer-lhe: “Manda cunhar uma medalha. As pessoas que a trouxerem,
com devoção, hão de receber muitas graças.” E a minha avó me
mostrava a medalha, dava um beijo na medalha e pedia para eu também
dar um beijo na medalha. Eu beijava.
Fiquei
ao lado da minha avó, que morria. Ela agarrou a minha mão e disse
“meu netinho querido, você vai ficar sozinho no mundo, sem a sua
avó para cuidar de você, por isso eu quero que você use esta
medalha bendita”, e tirou a medalha presa num cordão do pescoço.
“Promete que vai usá-la sempre.”
“Prometo”,
eu disse.
Nesse
momento ela morreu, e tive a impressão de que ela sorria, feliz.
Passei
a usar a medalha, por dentro da camisa, é claro. E também, conforme
outra promessa que fizera à minha avó, todos os domingos eu ia à
missa, bem cedinho, no horário em que ela ia. Eu não rezava, ficava
lá, sentado, pensando na vida. Um dia uma mulher me perguntou:
“E
aquela simpática senhora que sempre o acompanhava? Não vem mais? Eu
sinto falta dela, sua presença me tranquilizava.”
“Era
a minha avó. Ela faleceu.”
“Sinto
muito. Ela era muito simpática.”
Quando
a missa terminou, era ainda muito cedo.
“Você
já tomou café?”, a mulher perguntou.
“Não...
não...”
“Aqui
perto tem um lugar ótimo, servem um café com torradas muito bom. Eu
o convido. Está bem?”
“Agora?”,
respondi, titubeante.
“Sim”,
disse a mulher, me pegando pelo braço.
O
bar era um lugar simpático. Notei então, depois que sentamos, que a
mulher era uma jovem muito bonita.
“Meu
nome é Silvia.”
“O
meu é Rodrigo.”
Todos
os domingos, depois da missa, tomávamos café juntos. Um dia Silvia
me disse que queria me contar uma história.
“Fui
educada em colégio de freiras. Meu pai queria que eu me tornasse
freira. Ele dizia sempre que vivíamos num mundo imoral, devasso,
libertino, lascivo, que precisava salvar a filha dele desses perigos
e a única forma era eu me tornar freira. Ser freira é um processo
complicado. Você tem tempo e paciência para ouvir?”
“Sim,
claro.”
“É
preciso ser católica, ser solteira. Você não pode ter outro
relacionamento, seria uma distração para o chamado de Deus. Tem que
escolher uma comunidade para a qual deseja se dedicar. Tem que deixar
claro que pretende se comprometer seriamente. A instituição então
irá avaliar o seu caso. Serão discutidos assuntos concretos como
datas, lugares e procedimentos. E se faz uma reunião com a
diretoria.”
“Complicada,
essa coisa.”
“Mais
do que você pensa. O processo pré-seletivo (no qual ambas as partes
estão interessadas e trabalhando juntas) pode levar de um a três
anos. Você precisa ter certeza absoluta do que quer na vida — esse
é um compromisso verdadeiramente sério. Ele também é conhecido
como postulado. Você já trabalhará com as outras irmãs, mas
arcando com as próprias despesas (é por isso que deve ter uma
situação financeira razoável antes de começar). Para dar início
a todo o processo, deve-se escrever uma carta.”
“Uma
carta?”, perguntei. De vez em quando eu usava uma palavra que
Silvia acabara de dizer e fazia uma pergunta.
“Sim,
uma carta em que deve ficar claro o seu interesse em fazer parte da
comunidade. O processo seletivo normalmente dura de seis meses a dois
anos e termina quando ambas as partes considerarem que já é a hora.
Rodrigo, eu prendi a sua atenção com a minha história e você não
tomou o seu café nem comeu a sua torrada.”
Na
verdade eu não tinha a menor ideia sobre o que ela estava falando.
Eu sempre ficava encantado com a beleza de Silvia, o som da sua voz,
seus dentes perfeitos.
Apressadamente
mastiguei uma torrada.
“Posso
continuar?”
“Sim,
sim, por favor.”
“Até
aqui você já terá se tornado um membro da comunidade, mas sem um
compromisso definitivo. Você será chamada de ‘Noviça’. Pelas
leis da Igreja, esse período dura um ano, mas muitas instituições
levam até dois anos. Parte do motivo que faz com que o processo
demore é para que você não tenha dúvidas de que está tomando a
decisão certa para si mesma. Então disseram que iam raspar a minha
cabeça, antes de eu fazer os votos finais.”
Esta
frase da Silvia eu entendi: raspar a cabeça.
“O
quê? Raspar a cabeça? Raspar a sua cabeça?”, perguntei
horrorizado, contemplando os lindos cabelos de Silvia.
“Mas
eu não raspei. Quando soube o que eu teria que fazer como freira,
desisti no noviciado. Sabe qual o papel de uma freira?”
“Rezar?”
“Sim,
só que na verdade a única função da freira é pedir dinheiro. Mas
isso pode ser feito por qualquer um. Não precisa ser freira para
isso. Em suma, a existência de freiras e ordens religiosas não tem
finalidade nenhuma, sendo um tremendo desperdício de tempo, energia,
recursos e tudo o mais. Compara uma freira com um padre. O padre é
importante, tem uma igreja, ouve confissões, perdoa, vira bispo,
vira cardeal, vira papa. E a freira é uma mera pedinte. Quando
percebi isso tudo, abandonei o convento. Meu pai havia falecido e
assim ninguém se opôs ao meu gesto. Tenho uma confissão a lhe
fazer. Não sou mais católica. Acredito em Deus e vou à igreja
pensar em Deus. Agora chega, vamos falar de você.”
“Eu
sou... sou... Não creio em Deus, nem no Diabo.”
“E
por que vai à igreja?”
“Prometi
à minha avó.”
“Você
entende de contabilidade?”
“Sou
contador diplomado.”
“Eu
preciso de um contador para arrumar as finanças do meu pai. Pago
bem.”
Fui
trabalhar para Silvia. Na casa dela.
Certa
ocasião ela pediu para eu dormir lá. À noite entrou no meu quarto
vestindo uma camisola.
“Rodrigo,
tenho um pedido a fazer.”
“Sim.”
“Eu
sou virgem.”
“Sim.”
“Quero
deixar de ser. Você me ajuda?”
Confesso
que fiquei quase tão nervoso quanto Silvia. Mas depois tudo foi
ficando cada vez melhor.
Esta
é uma história de amor. Vou terminando por aqui, pois não quero
parecer piegas.
Rubem
Fonseca, in Histórias curtas
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