Fotograma do filme Quincas Berro-D'água
– Vai
ser noite de temporal, é melhor voltar.
Pensava
ele trazer o saveiro para o cais antes que caísse a tempestade. Era,
porém, amável a cachaça, gostosa a conversa, havia ainda muita
arraia no caldeirão, boiando no amarelo do azeite-de-dendê, e a voz
de Maria Clara dava uma dolência, um desejo de demorar nas águas.
Ao demais, como interromper o idílio de Quincas e Quitéria naquela
noite de festa?
Foi
assim que o temporal, o vento uivando, as águas encrespadas, os
alcançou em viagem. As luzes da Bahia brilhavam na distância, um
raio rasgou a escuridão. A chuva começou a cair. Pitando seu
cachimbo, Mestre Manuel ia ao leme. Ninguém sabe como Quincas se pôs
de pé, encostado à vela menor. Quitéria não tirava os olhos
apaixonados da figura do velho marinheiro, sorridente para as ondas a
lavar o saveiro, para os raios a iluminar o negrume. Mulheres e
homens se seguravam às cordas, agarravam-se às bordas do saveiro, o
vento zunia, a pequena embarcação ameaçava soçobrar a cada
momento. Silenciara a voz de Maria Clara, ela estava junto do seu
homem na barra do leme.
Pedaços
de mar lavavam o barco, o vento tentava romper as velas. Só a luz do
cachimbo de Mestre Manuel persistia, e a figura de Quincas, de pé,
cercado pela tempestade, impassível e majestoso, o velho marinheiro.
Aproximava-se o saveiro lenta e dificilmente das águas mansas do
quebra-mar. Mais um pouco e a festa recomeçaria. Foi quando cinco
raios sucederam-se no céu, a trovoada reboou num barulho de fim do
mundo, uma onda sem tamanho levantou o saveiro. Gritos escaparam das
mulheres e dos homens, a gorda Margô exclamou:
– Valha-me
Nossa Senhora!
No
meio do ruído, do mar em fúria, do saveiro em perigo, à luz dos
raios, viram Quincas atirar-se e ouviram sua frase derradeira.
Penetrava
o saveiro nas águas calmas do quebra-mar, mas Quincas ficara na
tempestade, envolto num lençol de ondas e espuma, por sua própria
vontade.
Não
houve jeito da agência funerária receber o esquife de volta, nem
pela metade do preço. Tiveram de pagar, mas Vanda aproveitou as
velas que sobraram. O caixão está até hoje no armazém de Eduardo,
esperançoso ainda de vendê-lo a um morto de segunda mão. Quanto à
frase derradeira há versões variadas. Mas quem poderia ouvir
direito no meio daquele temporal? Segundo um trovador do Mercado,
passou-se assim:
“No
meio da confusão
Ouviu-se
Quincas dizer:
“–Me
enterro como entender
Na
hora que resolver.
Podem
guardar seu caixão
Pra
melhor ocasião.
Não
vou deixar me prender
Em
cova rasa no chão."
E
foi impossível saber
O
resto de sua oração.”
FIM
Jorge
Amado, in A morte e morte de Quincas Berro-D’água
Nenhum comentário:
Postar um comentário