segunda-feira, 8 de junho de 2020

A morte e morte de Quincas Berro-D’água (trecho final)

Fotograma do filme Quincas Berro-D'água

 – Vai ser noite de temporal, é melhor voltar.
Pensava ele trazer o saveiro para o cais antes que caísse a tempestade. Era, porém, amável a cachaça, gostosa a conversa, havia ainda muita arraia no caldeirão, boiando no amarelo do azeite-de-dendê, e a voz de Maria Clara dava uma dolência, um desejo de demorar nas águas. Ao demais, como interromper o idílio de Quincas e Quitéria naquela noite de festa?
Foi assim que o temporal, o vento uivando, as águas encrespadas, os alcançou em viagem. As luzes da Bahia brilhavam na distância, um raio rasgou a escuridão. A chuva começou a cair. Pitando seu cachimbo, Mestre Manuel ia ao leme. Ninguém sabe como Quincas se pôs de pé, encostado à vela menor. Quitéria não tirava os olhos apaixonados da figura do velho marinheiro, sorridente para as ondas a lavar o saveiro, para os raios a iluminar o negrume. Mulheres e homens se seguravam às cordas, agarravam-se às bordas do saveiro, o vento zunia, a pequena embarcação ameaçava soçobrar a cada momento. Silenciara a voz de Maria Clara, ela estava junto do seu homem na barra do leme.
Pedaços de mar lavavam o barco, o vento tentava romper as velas. Só a luz do cachimbo de Mestre Manuel persistia, e a figura de Quincas, de pé, cercado pela tempestade, impassível e majestoso, o velho marinheiro. Aproximava-se o saveiro lenta e dificilmente das águas mansas do quebra-mar. Mais um pouco e a festa recomeçaria. Foi quando cinco raios sucederam-se no céu, a trovoada reboou num barulho de fim do mundo, uma onda sem tamanho levantou o saveiro. Gritos escaparam das mulheres e dos homens, a gorda Margô exclamou:
Valha-me Nossa Senhora!
No meio do ruído, do mar em fúria, do saveiro em perigo, à luz dos raios, viram Quincas atirar-se e ouviram sua frase derradeira.
Penetrava o saveiro nas águas calmas do quebra-mar, mas Quincas ficara na tempestade, envolto num lençol de ondas e espuma, por sua própria vontade.
Não houve jeito da agência funerária receber o esquife de volta, nem pela metade do preço. Tiveram de pagar, mas Vanda aproveitou as velas que sobraram. O caixão está até hoje no armazém de Eduardo, esperançoso ainda de vendê-lo a um morto de segunda mão. Quanto à frase derradeira há versões variadas. Mas quem poderia ouvir direito no meio daquele temporal? Segundo um trovador do Mercado, passou-se assim:

No meio da confusão
Ouviu-se Quincas dizer:
“–Me enterro como entender
Na hora que resolver.
Podem guardar seu caixão
Pra melhor ocasião.
Não vou deixar me prender
Em cova rasa no chão."
E foi impossível saber
O resto de sua oração.”

FIM
Jorge Amado, in A morte e morte de Quincas Berro-D’água

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