terça-feira, 30 de junho de 2020

Google Doodle do dia: Tebas, o escravo arquiteto


Joaquim Pinto de Oliveira (Santos, 1721 São Paulo, 1811), também conhecido como Tebas, foi um escravo e artesão que, após a sua alforria, se tornou arquiteto em São Paulo durante o Brasil Colonial.
Joaquim Pinto de Oliveira, ou Tebas, como ficou conhecido, conseguiu a alforria aos 58 anos e deixou sua marca na cidade escravocrata. Responsável pela ornamentação de diferentes igrejas, ele teve participação em obras importantes como os projetos de restauração do Mosteiro de São Bento (1766 e 1798) e da antiga Catedral da Sé (1778). Joaquim nasceu na cidade de Santos como uma pessoa escravizada, que foi trazido do litoral paulista até São Paulo por Bento de Oliveira Lima, um mestre-pedreiro português de quem Tebas era escravizado. Em 1778, libertou-se da escravatura. Joaquim prestou serviços para as principais ordens católicas. Os Beneditinos, os Carmelitas, e os Franciscanos o contrataram para a construção do Largo São Bento, a Igreja da Ordem Terceira do Carmo, e o Largo de São Francisco, respectivamente. Joaquim também serviu à Igreja Católica, construindo uma das torres, e a reforma da primeira Igreja da Sé.
Especialista na arte e na técnica de talhar e aparelhar pedras, Tebas impactou de forma decisiva uma São Paulo até então erguida principalmente com taipas, construções de barro com possibilidades estéticas muito limitadas. Seu trabalho era requisitado, sobretudo, pelas ordens religiosas presentes na cidade desde a fundação.
Ele foi um construtor que chegou a São Paulo escravizado, vindo de Santos, trazido por um mestre pedreiro português que identificou na cidade uma oportunidade de trabalho”, conta o jornalista Abilio Ferreira, organizador do livro Tebas: um negro arquiteto na São Paulo escravocrata, lançado em 2019 por ele, Carlos Gutierrez Cerqueira, Emma Young, Ramatis Jacino e Maurílio Chiaretti. “Na época, quem tinha recursos eram as corporações religiosas. Por isso, ele atuou nos três vértices do chamado triângulo histórico formado pelos conventos de São Bento, do Carmo e de São Francisco”, recorda o escritor. O trabalho cuidadoso com ornamentos transformou o pedreiro de ofício num arquiteto disputado, contratado pelos beneditinos, carmelitas, franciscanos e católicos.
Embora tenha tido seu talento reconhecido em vida, sua história foi perdida com o tempo até cair no esquecimento. Apesar disso, obras como as fachadas da Igreja da Ordem 3ª do Carmo e da Igreja das Chagas do Seráfico Pai São Francisco, ambas no centro da capital, resistem ao tempo e continuam de pé. Seu trabalho mais conhecido não teve a mesma sorte. O Chafariz da Misericórdia, primeiro chafariz público da capital, foi demolido em 1866 após o processo de canalização de água no centro. A obra, erguida onde hoje está a Rua Direita, funcionava como um ponto de encontro de escravizados que buscavam água para seus senhores.
Longevo e talentoso, Joaquim Pinto de Oliveira exerceu seu ofício até os 90 anos. Morreu no dia 11 de janeiro de 1811, vítima de uma gangrena possivelmente causada por acidente de trabalho. E, apesar de ter definido os traços da arquitetura colonial paulistana, apenas foi reconhecido arquiteto mais de 200 anos depois, em 2018, pelo Sindicato dos Arquitetos no Estado de São Paulo (Sasp), depois que documentos oficiais localizados pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN) revelaram as relações de trabalho entre o arquiteto escravizado e as ordens religiosas. “É importante ressaltar que Tebas não era uma exceção. Os africanos transplantados para as Américas trouxeram consigo muitos conhecimentos, principalmente sobre o trabalho com pedras e metais”, afirma Abilio. “Ele é mais um personagem que nos oferece pistas que dignificam esse segmento da população esquecida”.
Após o lançamento do livro, o grupo de pesquisadores agora busca apoio para fortalecer as pesquisas e descobrir mais detalhes da trajetória, do legado e da história de vida de Tebas. “Ainda faltam muitas peças nesse quebra-cabeça. A pesquisa sobre essa figura histórica precisa ser estimulada. Há muitas perguntas sem respostas, como a sua religião, além de muitas outras obras, em São Paulo e Santos, que podem ser de autoria dele e sequer imaginamos”.
Fonte: Wikipédia

Animal

O homem é um animal político.”
Aristóteles
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O homem político é um animal.”
Impagável inversão feita pelos redatores do Planeta Diário

Inconvenientes nos serviços públicos


Veja o que acontece quando se confia nos cronópios. Mal fora nomeado Diretor-geral de Radiodifusão, aquele cronópio chamou uns tradutores da rua San Martin e os fez traduzir todos os textos, anúncios e canções para o romeno, língua não muito popular na Argentina.
Às oito horas da manhã os famas começavam a ligar seus aparelhos, ansiosos de ouvir os jornais falados, bem como os anúncios do Geniol e do Azeite Cozinheiro que é de todos o primeiro.
E ouviram, mas em romeno, de modo que só compreendiam a marca do produto. Profundamente assombrados, os famas sacudiram os aparelhos mas tudo continuava romeno, até o tango Esta noche me emborracho e o telefone da Direção-geral da Radiodifusão era atendido por uma moça que respondia em romeno às ruidosas reclamações, com o que se estabelecia uma confusão dos diabos.
Ciente do fato, o Supremo Governo mandou fuzilar o cronópio que assim manchava as tradições da pátria. Por infelicidade o pelotão era integrado de cronópios alistados, que em vez de atirar no ex-Diretor-geral mandaram bala em cima da multidão concentrada na Plaza de Mayo, com tão boa pontaria que acertaram seis oficiais de Marinha e um farmacêutico. Acudiu um pelotão de famas, o cronópio foi devidamente fuzilado e nomearam para seu lugar um distinto autor de canções folclóricas e de um ensaio sobre a matéria cinzenta. Esse fama restabeleceu o idioma nacional no rádio, mas acontece que os famas haviam perdido a confiança e quase não ligavam os aparelhos. Muitos famas, pessimistas por natureza, haviam comprado dicionários e manuais de romeno, assim como também vidas do rei Carol e da senhora Lupescu. O romeno tornou-se moda apesar da cólera do Superior Governo, e ao túmulo do cronópio chegavam furtivamente delegações que deixavam cair lágrimas e cartões de visita, onde proliferavam nomes conhecidos em Bucareste, cidade de filatelistas e atentados.
Julio Cortázar, in Histórias de Cronópios e de Famas

O tempo


A vida é o dever que nós trouxemos para fazer em casa.
Quando se vê, já são seis horas!
Quando de vê, já é sexta-feira!
Quando se vê, já é natal.
Quando se vê, já terminou o ano..
Quando se vê perdemos o amor da nossa vida
Quando se vê passaram 50 anos!
Agora é tarde demais para ser reprovado...
Se me fosse dado um dia, outra oportunidade, eu nem olhava o relógio.
Seguiria sempre em frente e iria jogando pelo caminho a casca dourada e inútil das horas...
Seguraria o amor que está a minha frente e diria que eu o amo...
E tem mais: não deixe de fazer algo de que gosta devido à falta de tempo.
Não deixe de ter pessoas ao seu lado por puro medo de ser feliz.
A única falta que terá será a desse tempo que, infelizmente, nunca mais voltará.
Mario Quintana

Não se pode perder o que não se tem

Embora devesses viver três mil anos, e tanto dez mil anos, lembra que homem nenhum perde outra vida além da que ele vive agora, nem vive outra além daquela que ele perde agora. Assim a mais longa e a mais curta vêm a ser o mesmo. O presente é o mesmo para todos, embora aquilo que parece não seja o mesmo e assim aquilo que se perde parece ser apenas um momento. Um homem não pode perder nem o passado nem o futuro, pois como pode alguém tirar dele o que ele não tem? Deves, pois, ter essas duas coisas em mente: uma, que todas as coisas, por toda a eternidade, são idênticas e cíclicas e é indiferente ao homem ver as mesmas coisas durante cem ou duzentos anos, ou um tempo infinito; outra, que o longevo e o que morre cedo perdem o mesmo. Pois o presente é a única coisa de que um homem pode ser privado, se é verdade que essa é a única coisa que ele tem e que não se pode perder o que não se tem.”
Marco Aurélio, in Meditações

A noviça

Minha avó, quando me via triste, eu vivo triste desde pequeno, a minha avó dizia “tristezas não pagam dívidas”, e até cantava uma música popular dizendo isso. Ela era aleijada, andava numa cadeira de rodas, tomava mil remédios, de manhã, de tarde, de noite, pílulas, xaropes, injeções, e era uma mulher alegre. Ou seria fingimento? Pena de mim? Na família éramos apenas nós dois. Minha mãe morreu no meu parto, meu pai morreu de tanto beber, mas eu desconfio que ele se matou.
Todo domingo eu levo minha avó à igreja. Ela reza. Eu finjo que rezo, ela ficaria muito infeliz se soubesse que o neto dela não acredita em Deus, em santos, em rezas.
Eu trabalho numa empresa de contabilidade. Sou um dos muitos contadores que trabalham num escritório ordinário sem ar-refrigerado, e no verão aquilo é um inferno. No fim do ano sou presenteado com um peru, desses que são engordados com hormônios sintéticos. Jogo aquela porcaria no lixo.
Não tenho namorada. Elas querem se divertir. Mulher só gosta de homem triste se ele for muito rico. Não pensem que sou misógino. Eu gosto das mulheres, gosto de ir para a cama com elas. Mas só quem me atura são as prostitutas.
Então a minha avó morreu. Eu nem disse o nome dela. Maria da Graça. Ela me contava a origem do seu nome mostrando uma medalha. Uma santa que teve uma visão, os sagrados corações de Jesus e Maria, o de Jesus cercado por uma coroa de espinhos e a arder em chamas, e o de Maria também em chamas e atravessado por uma espada, cercado de 12 estrelas. Ao mesmo tempo a santa ouviu distintamente uma voz dizer-lhe: “Manda cunhar uma medalha. As pessoas que a trouxerem, com devoção, hão de receber muitas graças.” E a minha avó me mostrava a medalha, dava um beijo na medalha e pedia para eu também dar um beijo na medalha. Eu beijava.
Fiquei ao lado da minha avó, que morria. Ela agarrou a minha mão e disse “meu netinho querido, você vai ficar sozinho no mundo, sem a sua avó para cuidar de você, por isso eu quero que você use esta medalha bendita”, e tirou a medalha presa num cordão do pescoço. “Promete que vai usá-la sempre.”
Prometo”, eu disse.
Nesse momento ela morreu, e tive a impressão de que ela sorria, feliz.
Passei a usar a medalha, por dentro da camisa, é claro. E também, conforme outra promessa que fizera à minha avó, todos os domingos eu ia à missa, bem cedinho, no horário em que ela ia. Eu não rezava, ficava lá, sentado, pensando na vida. Um dia uma mulher me perguntou:
E aquela simpática senhora que sempre o acompanhava? Não vem mais? Eu sinto falta dela, sua presença me tranquilizava.”
Era a minha avó. Ela faleceu.”
Sinto muito. Ela era muito simpática.”
Quando a missa terminou, era ainda muito cedo.
Você já tomou café?”, a mulher perguntou.
Não... não...”
Aqui perto tem um lugar ótimo, servem um café com torradas muito bom. Eu o convido. Está bem?”
Agora?”, respondi, titubeante.
Sim”, disse a mulher, me pegando pelo braço.
O bar era um lugar simpático. Notei então, depois que sentamos, que a mulher era uma jovem muito bonita.
Meu nome é Silvia.”
O meu é Rodrigo.”
Todos os domingos, depois da missa, tomávamos café juntos. Um dia Silvia me disse que queria me contar uma história.
Fui educada em colégio de freiras. Meu pai queria que eu me tornasse freira. Ele dizia sempre que vivíamos num mundo imoral, devasso, libertino, lascivo, que precisava salvar a filha dele desses perigos e a única forma era eu me tornar freira. Ser freira é um processo complicado. Você tem tempo e paciência para ouvir?”
Sim, claro.”
É preciso ser católica, ser solteira. Você não pode ter outro relacionamento, seria uma distração para o chamado de Deus. Tem que escolher uma comunidade para a qual deseja se dedicar. Tem que deixar claro que pretende se comprometer seriamente. A instituição então irá avaliar o seu caso. Serão discutidos assuntos concretos como datas, lugares e procedimentos. E se faz uma reunião com a diretoria.”
Complicada, essa coisa.”
Mais do que você pensa. O processo pré-seletivo (no qual ambas as partes estão interessadas e trabalhando juntas) pode levar de um a três anos. Você precisa ter certeza absoluta do que quer na vida — esse é um compromisso verdadeiramente sério. Ele também é conhecido como postulado. Você já trabalhará com as outras irmãs, mas arcando com as próprias despesas (é por isso que deve ter uma situação financeira razoável antes de começar). Para dar início a todo o processo, deve-se escrever uma carta.”
Uma carta?”, perguntei. De vez em quando eu usava uma palavra que Silvia acabara de dizer e fazia uma pergunta.
Sim, uma carta em que deve ficar claro o seu interesse em fazer parte da comunidade. O processo seletivo normalmente dura de seis meses a dois anos e termina quando ambas as partes considerarem que já é a hora. Rodrigo, eu prendi a sua atenção com a minha história e você não tomou o seu café nem comeu a sua torrada.”
Na verdade eu não tinha a menor ideia sobre o que ela estava falando. Eu sempre ficava encantado com a beleza de Silvia, o som da sua voz, seus dentes perfeitos.
Apressadamente mastiguei uma torrada.
Posso continuar?”
Sim, sim, por favor.”
Até aqui você já terá se tornado um membro da comunidade, mas sem um compromisso definitivo. Você será chamada de ‘Noviça’. Pelas leis da Igreja, esse período dura um ano, mas muitas instituições levam até dois anos. Parte do motivo que faz com que o processo demore é para que você não tenha dúvidas de que está tomando a decisão certa para si mesma. Então disseram que iam raspar a minha cabeça, antes de eu fazer os votos finais.”
Esta frase da Silvia eu entendi: raspar a cabeça.
O quê? Raspar a cabeça? Raspar a sua cabeça?”, perguntei horrorizado, contemplando os lindos cabelos de Silvia.
Mas eu não raspei. Quando soube o que eu teria que fazer como freira, desisti no noviciado. Sabe qual o papel de uma freira?”
Rezar?”
Sim, só que na verdade a única função da freira é pedir dinheiro. Mas isso pode ser feito por qualquer um. Não precisa ser freira para isso. Em suma, a existência de freiras e ordens religiosas não tem finalidade nenhuma, sendo um tremendo desperdício de tempo, energia, recursos e tudo o mais. Compara uma freira com um padre. O padre é importante, tem uma igreja, ouve confissões, perdoa, vira bispo, vira cardeal, vira papa. E a freira é uma mera pedinte. Quando percebi isso tudo, abandonei o convento. Meu pai havia falecido e assim ninguém se opôs ao meu gesto. Tenho uma confissão a lhe fazer. Não sou mais católica. Acredito em Deus e vou à igreja pensar em Deus. Agora chega, vamos falar de você.”
Eu sou... sou... Não creio em Deus, nem no Diabo.”
E por que vai à igreja?”
Prometi à minha avó.”
Você entende de contabilidade?”
Sou contador diplomado.”
Eu preciso de um contador para arrumar as finanças do meu pai. Pago bem.”

Fui trabalhar para Silvia. Na casa dela.
Certa ocasião ela pediu para eu dormir lá. À noite entrou no meu quarto vestindo uma camisola.
Rodrigo, tenho um pedido a fazer.”
Sim.”
Eu sou virgem.”
Sim.”
Quero deixar de ser. Você me ajuda?”
Confesso que fiquei quase tão nervoso quanto Silvia. Mas depois tudo foi ficando cada vez melhor.
Esta é uma história de amor. Vou terminando por aqui, pois não quero parecer piegas.
Rubem Fonseca, in Histórias curtas

De política

Ah, meu caro Rubião, isto de política pode ser comparado à paixão de Nosso Senhor Jesus Cristo; não falta nada, nem o discípulo que nega, nem o discípulo que vende. Coroa de espinhos, bofetadas, madeiro, e afinal morre-se na cruz das ideias, pregado pelos cravos da inveja, da calúnia e da ingratidão…”
Machado de Assis, in Quincas Borba

Antinomia do casamento

Estamos numa baita crise. Discutimos muito”, desabafou com o melhor amigo, aquele casado ainda com a namorada da faculdade, pai de dois moleques, dono de um golden que “retrieve” até pensamento e de uma rotina aparentemente invejável.
Amigo que, como sua mulher, não aparentava a idade que tinha. Casal esportista, queimado pelo sol, causava admiração. Os dois sempre bem-humorados. Nunca expunham desavenças, se existiam.
Se um casamento pode dar certo, ali estava o exemplo a ser seguido. Qual o segredo?
O que detona uma discussão?”, o amigo perguntou, como um sábio socrático.
Decisões. Em viagens, por exemplo. Brigamos em todas as viagens que fizemos. Só quando namorávamos, uma vez deu certo.”
E se lembrou da viagem teste para Bariloche, de classe executiva, com direito a uma tarde em Buenos Aires para compras.
Estavam se conhecendo. Viagem teste: se conseguissem o consenso em toda a programação turística, se conseguissem esquiar, passear, comprar e ainda transar como dois adolescentes, a relação ultrapassaria o cabo das tormentas a caminho de um mundo novo, paradisíaco, cheio de especiarias e ritos exóticos.
Rolou. Foram morar juntos um mês depois de voltarem da Argentina.
Mas, na primeira semana juntos, “casados”, o alarme apitou. A primeira discussão pública.
Tinha levado a mulher para jantar num japonês escondido que só ele conhecia, daqueles que gritam “irashaimase” assim que os clientes entram. Ele era chamado pelo nome pelos garçons. Sabia de cor o cardápio e o time para qual cada japa torcia.
Ela deixou ele escolher o combinado; afinal, ele era um “local”. Enquanto o garçom íntimo anotava o pedido, ela lia o cardápio e questionava se o custo de um outro combinado, que tinha mais peças e era pouca coisa mais caro, não valia o benefício.
Você me diz para escolher o prato, mas acabou de interferir na decisão”, comentou irônico.
Só estou tentando ajudar”, foi a desculpa que passou a ser o mantra a atormentar a vida do casal.

Nas viagens seguintes, já na ida ao aeroporto começavam os conflitos. Ele preferia fazer hora num duty free a mofar ansioso num congestionamento. Planejava sair com cinco horas de antecedência. Ela o chamava de estressado e tentava acalmá-lo com um desesperador “vai dar tempo”.
No check-in, mais conflitos, já que chegavam em cima da hora: lugar no avião e o que levar como bagagem de mão.
Assim que decolavam, ele se dopava. Preferia apagar por todo o voo. Ela queria papear, ver todos os filmes, ler.
No exterior, ele preferia andar de metrô e gastar mais tempo em museus do que solas de sapatos. Ela preferia andar a pé.
Ele preferia café da manhã no quarto. Ela, na rua. Ele detestava igrejas e museus de arte contemporânea. Ela era fascinada por todos os templos, sem distinção de estilo e religião, e seguia as dicas de viagem de uma revista feminina de moda.
Ele queria conhecer a cidade num ônibus de dois andares, que parasse em todos os pontos turísticos e resumisse numa tarde o que deve ser visto e fotografado. Ela preferia jogar com o acaso e sair sem plano traçado.
Ele queria conhecer a gastronomia local. Quanto mais esquisita, mais interessava. Ela temia por novidades da flora e da fauna local e sempre sugeria restaurantes básicos, mediterrâneos. Seu maior pavor era uma intoxicação alimentar paga em moeda estrangeira.
Por fim, o amigo deu o conselho que serviria para a vida toda, e mudaria para sempre a relação daquele casal:
Deixa ela decidir tudo. Faça como eu. Enquanto ela discute no check-in do aeroporto, fique lá na calçada fumando.”
Mas eu não fumo.”
Comece.”
E assim foi.
Planejou outra viagem para colocar em prática o novo comportamento.
A ida para Orlando foi um sucesso. Ele não palpitou. Nem questionou quando ela pediu na Disney que ele ficasse ao lado do Pateta, para uma foto que postou no Instagram.
E começou a fumar. Em toda e qualquer indecisão turística, ele dizia: “Decide você, que vou lá fora fumar um cigarrinho.”
Não discutiu com ela quando na volta deu excesso de bagagem. E passou o voo acordado vendo as fotos que ela tirou com o Pato Donald, o Mickey, a Margarida, o Tio Patinhas e todo o casting imbecil da família Disney. Voltaram e concluíram que nasceram um para o outro.

Ela decidiu se casarem formalmente.
Ele topou, apesar de agnóstico.
Ela escolheu a data, o local, as músicas e o bufê. Fez sozinha a lista de convidados. E sugeriu mudarem de casa.
Ele topou.
Ela escolheu o bairro, a rua, o condomínio e a companhia que faria a mudança.
Ele apenas encaixotou.
Ela decorou o novo apê. E era a última palavra em tudo: se sairiam ou ficariam em casa assistindo a um DVD, selecionado por ela, lógico, no novo blu-ray que ela escolheu e que combinava com os móveis da sala. É, foi na mudança que ela decidiu que a TV ficaria na sala.
Às quartas, jogatina. Na mesa de pôquer, só os maridos.
Enquanto eles apontavam quem era o small e o big blind, reclamavam das mulheres mandonas e dos conflitos infindáveis. Só ele jogava concentrado, ciente de que encontrara a fórmula perfeita, que pendia para um lado.
Mal sabia que, na sala ao lado, na tranca das mulheres, a sua era a que sempre puxava o debate, com a cumplicidade da mesa.
Ela não tinha outro assunto:
Não entendo, ele parece interessado, mas no final sou eu quem acaba fazendo tudo. Fico esperando ele tomar atitudes, mas nada. E ainda começou a fumar!”
Marcelo Rubens Paiva, in As verdades que ela não diz

A terra do sul

Caninos Brancos desembarcou do vapor em San Francisco. Ficou estarrecido. No âmago mais profundo de si mesmo, abaixo de qualquer processo de raciocínio ou ato de consciência, ele tinha associado o poder com a divindade. E jamais os homens brancos lhe pareceram deuses tão maravilhosos como agora, quando caminhava pelo calçamento escorregadio de San Francisco. As cabanas de toras que conhecera eram substituídas por prédios elevados. As ruas estavam cheias de perigos – carros, carroças, automóveis; grandes cavalos puxando com esforço imensos caminhões; e monstruosos bondes elétricos e a cabo buzinando e ressoando pelo meio, berrando a sua ameaça insistente à maneira dos linces que ele conhecera nas matas do norte.
Tudo isso era a manifestação de poder. Através de tudo, por trás de tudo, estava o homem, governando e controlando, expressando-se, como antigamente, pelo seu domínio sobre a matéria. Era colossal, atordoador. Caninos Brancos estava aterrado. O medo pousou na sua mente. Assim como, nos seus dias de filhote, fora obrigado a sentir a sua pequenez e insignificância no dia em que saiu pela primeira vez da Floresta para a vila de Castor Cinza, agora, na sua estatura plenamente desenvolvida e no orgulho da sua força, era obrigado a sentir-se pequeno e insignificante. E havia tantos deuses! Ele estava tonto com o enxame de deuses. O trovão das ruas batia em seus ouvidos. Estava perplexo diante do tremendo e interminável ímpeto e movimento das coisas. Como nunca antes, ele agora sentia a sua dependência do senhor do amor, no encalço de cujos passos seguia, jamais o perdendo de vista não importa o que acontecesse.
Mas Caninos Brancos não devia ter mais do que uma visão de pesadelo da cidade – uma experiência como um sonho ruim, irreal e terrível, que o assombrou muito tempo depois nos seus sonhos. O dono o colocou num vagão de bagagem, preso num canto no meio de arcas e valises empilhadas. Ali dominava um deus atarracado e musculoso, fazendo muito barulho, atirando as arcas e as caixas de um lado para o outro, arrastando-as pela porta e jogando-as nas pilhas, ou lançando-as para fora da porta, em meio a choques e colisões, a outros deuses que as aguardavam.
E ali, nesse inferno de bagagem, Caninos Brancos foi abandonado pelo dono. Ou, pelo menos, Caninos Brancos pensou que fora abandonado, até sentir o cheiro das malas de roupas do dono a seu lado e passar a vigiá-las.
Já estava mais que na hora de o senhor aparecer – resmungou o deus do vagão, uma hora mais tarde, quando Weedon Scott surgiu na porta. – Esse seu cachorro não me deixa pôr nem um dedo nas suas coisas.
Caninos Brancos saiu do vagão. Ficou atônito. A cidade do pesadelo desaparecera. O vagão não tinha sido para ele mais do que um quarto numa casa, e quando entrara no recinto, a cidade estava toda ao seu redor. No intervalo, a cidade tinha sumido. O rugido já não aturdia seus ouvidos. Diante dele estava um campo sorridente, inundado de sol, indolente na sua quietude. Mas Caninos Brancos não teve muito tempo para se maravilhar com a transformação. Ele a aceitou como aceitava todas as atividades e manifestações inexplicáveis dos deuses. Era o seu modo de ser.
Um coche estava esperando. Um homem e uma mulher aproximaram-se do dono. Os braços da mulher se abriram e fecharam em torno do pescoço do dono – um ato hostil! No momento seguinte, Weedon Scott já se soltara do abraço e agarrava Caninos Brancos, que se tornara um demônio enfurecido a rosnar.
Tudo bem, mamãe – dizia Scott, enquanto agarrava Caninos Brancos com firmeza e o acalmava. – Ele achou que você fosse me atacar e não aguentou. Tudo bem. Tudo bem. Vai aprender logo, logo.
E espero que nesse meio tempo eu possa acarinhar o meu filho, quando o seu cachorro não estiver por perto – ela riu, embora estivesse pálida e trêmula de susto.
Ela olhou para Caninos Brancos, que rosnou e eriçou o pelo, fitando-a com olhos malévolos.
Ele vai ter que aprender, e vai aprender sem demora – disse Scott.
Falou suavemente com Caninos Brancos até o acalmar, depois a sua voz tornou-se firme.
Deita! Deita!
Esse fora um dos truques que o dono lhe ensinara, e Caninos Brancos obedeceu, embora se deitasse com relutância e morosidade.
Agora, mãe.
Scott lhe abriu os braços, mas manteve os olhos em Caninos Brancos.
Deita! – avisou. – Deita!
Eriçando o pelo em silêncio, meio agachado porque já se levantava, Caninos Brancos deitou-se de novo e observou o ato hostil ser repetido. Mas nenhum mal aconteceu, nem do abraço do estranho homem-deus que se seguiu. Depois as malas de roupas foram colocadas no coche, os estranhos deuses e o senhor do amor também subiram no carro, e Caninos Brancos os seguiu, ora correndo vigilantemente atrás, ora eriçando o pelo para os cavalos na corrida, avisando-os que ele estava ali para cuidar que nenhum mal acontecesse ao deus que eles puxavam tão velozmente pela terra.
Ao final de quinze minutos, o coche entrou balançando por um portão de pedra e seguiu entre uma fila dupla de nogueiras arqueadas e entrelaçadas. Nos dois lados estendiam-se gramados, a sua larga extensão quebrada, aqui e ali, por grandes carvalhos de ramos robustos. Nas proximidades, em contraste com o verde claro da grama cuidada, os campos de feno queimados de sol exibiam um tom bronzeado e dourado, enquanto mais além viam-se os morros castanhos amarelados e as pastagens nas montanhas. Do topo do gramado, na primeira ondulação suave do nível do vale, a casa de varandas fundas e muitas janelas erguia-se sobranceira.
Caninos Brancos não teve muita oportunidade de ver tudo isso. Mal o coche tinha entrado no terreno da casa, quando foi provocado por um cão pastor, de olhos brilhantes, focinho afilado, justamente indignado e zangado. Estava entre ele e o dono, isolando-o. Caninos Brancos não deu nenhum rosnado de aviso, mas o seu pelo se eriçou enquanto partia para o ataque silencioso e mortal. O ataque nunca se completou. Caninos Brancos parou de um modo abrupto e desajeitado, com as patas dianteiras rígidas retesando o corpo contra o seu momentum, quase sentando-se sobre as ancas, tão desejoso estava de evitar o contato com o cachorro que já estava prestes a atacar. Era uma fêmea, e a lei da sua espécie erguia uma barreira entre eles. Atacá-la exigia de Caninos Brancos nada menos que uma violação do seu instinto.
Mas com a cachorra pastora era diferente. Sendo uma fêmea, ela não possuía esse instinto. Por outro lado, sendo uma cachorra pastora, o seu medo instintivo da Floresta, e especialmente do lobo, era extraordinariamente agudo. Caninos Brancos era um lobo, o saqueador hereditário que pilhara os seus rebanhos desde o tempo em que as ovelhas foram pela primeira vez agrupadas e guardadas por algum de seus obscuros ancestrais. E assim, enquanto ele abandonava a arremetida e retesava-se para evitar o contato, ela pulava em cima dele. Caninos Brancos rosnou involuntariamente ao sentir os dentes no seu ombro, mas fora isso não tentou machucá-la. Recuou, as patas enrijecidas de constrangimento, e tentou passar ao redor dela. Esquivou-se deste ou daquele lado, curvou-se e virou-se, mas em vão. Ela continuava entre ele e o caminho por onde queria prosseguir.
Aqui, Collie! – chamou o homem estranho no coche.
Weedon Scott riu.
Não faz mal, papai. É uma boa disciplina. Caninos Brancos vai ter de aprender muitas coisas, e é bom começar desde já. Ele vai acabar se adaptando bem.
O coche seguiu adiante, e Collie continuava a bloquear a passagem de Caninos Brancos. Ele tentou ultrapassá-la na corrida, deixando o caminho e circulando pelo gramado; mas ela corria no círculo interno e menor, sempre presente, enfrentando-o com as suas duas filas de dentes brilhantes. Ele deu meia volta, passando pelo caminho para o outro gramado, e mais uma vez ela o forçou a se desviar.
O coche estava levando o dono embora. Caninos Brancos o vislumbrava desaparecer entre as árvores. A situação era desesperada. Ele tentou outro círculo. Ela seguiu, correndo rápida. E então, de repente, ele se virou contra Collie. Era o seu velho truque de luta. Ombro a ombro, ele a atacou em cheio. Ela não foi só derrubada. Tão veloz corria que rolou pela grama, ora sobre o lombo, ora sobre o lado, enquanto lutava para se deter, agarrando-se ao cascalho com as patas, e gritando agudamente o seu orgulho ferido e a sua indignação.
Caninos Brancos não esperou. O caminho estava desimpedido, e isso era tudo o que ele queria. Ela partiu atrás dele, sem cessar o seu alarido. Era um caminho reto agora e, quando começaram a correr realmente, Caninos Brancos foi capaz de lhe ensinar muitas coisas. Ela corria freneticamente, histericamente, empregando o máximo das suas forças, anunciando o esforço que fazia a cada pulo; e, durante todo esse tempo, Caninos Brancos corria facilmente à sua frente, sem esforços, deslizando como um fantasma sobre o terreno.
Ao rodear a casa até a porte-cochère, ele alcançou o coche. O carro tinha parado, e o dono estava descendo. Nesse momento, ainda correndo a toda velocidade, Caninos Brancos percebeu de repente um ataque pelo lado. Era um galgo que se precipitava sobre ele. Caninos Brancos tentou enfrentá-lo. Mas corria com demasiada velocidade, e o galgo estava perto demais. O cachorro o golpeou no lado, e tal era o seu momentum para diante, e tal foi a surpresa do ataque, que Caninos Brancos foi jogado ao chão, onde rolou completamente derrubado. Ele saiu do emaranhado um espetáculo de malignidade, as orelhas achatadas para trás, os lábios contorcidos, o focinho enrugado, os dentes estalando após as presas errarem por pouco a garganta macia do galgo.
O dono vinha correndo, mas estava longe demais, e foi Collie quem salvou a vida do galgo. Antes que Caninos Brancos pudesse pular e dar o golpe fatal, bem quando ele estava no ato de saltar em cima do galgo, Collie chegou. Ela fora vencida em habilidade e na corrida, sem falar no fato de ter sido derrubada sem cerimônia no cascalho, e a sua chegada foi como a de um tornado – composto de dignidade ofendida, fúria justificada e ódio instintivo por esse saqueador da Floresta. Atacou Caninos Brancos em ângulo reto no meio do seu pulo, e ele mais uma vez foi derrubado e rolou pelo chão.
No momento seguinte chegava o dono, que com uma das mãos segurou Caninos Brancos, enquanto o pai afastava os outros cachorros.
Sim, senhor, uma recepção muito calorosa para um pobre lobo solitário do Ártico – disse o dono, enquanto Caninos Brancos se acalmava sob a sua mão acariciadora. – Em toda a sua vida só se sabe de uma vez em que foi derrubado, e agora ele rolou pelo chão duas vezes em trinta segundos.
O coche se afastara, e outros deuses estranhos tinham saído da casa. Alguns mantinham-se respeitosamente a distância, mas dois deles, mulheres, cometeram o ato hostil de agarrar o dono pelo pescoço. Entretanto, Caninos Brancos estava começando a tolerar esse ato. Não parecia causar nenhum mal, e os barulhos que os deuses produziam não eram certamente ameaçadores. Esses deuses também faziam tentativas de se aproximar de Caninos Brancos, mas ele os afastava com um rosnado de aviso, e o dono também alertava com palavras. Nessas ocasiões, Caninos Brancos encostava-se nas pernas do dono e recebia palmadinhas tranquilizadoras na cabeça.
Ao ouvir a ordem “Dick! Deita!”, o galgo subira os degraus e deitara-se num dos lados da varanda, ainda rosnando e mantendo o intruso sob uma vigilância soturna. Uma das deusas-mulheres encarregou-se de Collie, com os braços ao redor do seu pescoço, afagando-a e acariciando-a; mas Collie estava muito perplexa e preocupada, ganindo e inquieta, ultrajada pela presença permitida desse lobo, segura de que os deuses estavam cometendo um erro.
Todos os deuses começaram a subir os degraus para entrar na casa. Caninos Brancos seguiu no encalço do dono. Dick, na varanda, rosnou, e Caninos Brancos, nos degraus, eriçou o pelo e rosnou em resposta.
Leve Collie para dentro e deixe os dois brigarem – sugeriu o pai de Scott. – Depois disso ficarão amigos.
Nesse caso Caninos Brancos, para mostrar a sua amizade, terá de ser o principal pranteador no funeral – riu o dono.
O velho Scott olhou incrédulo, primeiro para Caninos Brancos, depois para Dick, e finalmente para o filho.
Você quer dizer que...?
Weedon acenou com a cabeça.
Exatamente isso. Você teria um Dick morto em um minuto... dois minutos no máximo.
Ele virou-se para Caninos Brancos. – Vamos, lobo. É você que terá de entrar.
Caninos Brancos subiu os degraus e cruzou a varanda de pernas enrijecidas, com o rabo rigidamente ereto, mantendo os olhos em Dick para evitar um ataque pelo flanco, e preparado ao mesmo tempo para qualquer manifestação feroz do desconhecido que pudesse saltar sobre ele lá do interior da casa. Mas nada temível apareceu inesperadamente e, quando entrou na casa, explorou o terreno com cuidado, procurando o temível sem encontrá-lo. Depois deitou-se com um grunhido de satisfação aos pés do dono, observando tudo o que acontecia, sempre pronto a se levantar de um salto e a lutar pela vida com os terrores que, sentia, deviam estar à espreita sob a armadilha do teto da morada.
Jack London, in Caninos Brancos

Nada é impossível de mudar

Desconfiai do mais trivial, na aparência singelo.
E examinai, sobretudo, o que parece habitual.
Suplicamos expressamente: não aceiteis o que é de hábito como coisa natural, pois em tempo de desordem sangrenta, de confusão organizada, de arbitrariedade consciente, de humanidade desumanizada, nada deve parecer natural nada deve parecer impossível de mudar.
Bertolt Brecht

A incapacidade de ser verdadeiro


Paulo tinha fama de mentiroso. Um dia chegou em casa dizendo que vira no campo dois dragões-da-independência cuspindo fogo e lendo fotonovelas.
A mãe botou-o de castigo, mas na semana seguinte ele veio contando que caíra no pátio da escola um pedaço de lua, todo cheio de buraquinhos, feito queijo, e ele provou e tinha gosto de queijo.
Desta vez Paulo não só ficou sem sobremesa como foi proibido de jogar futebol durante quinze dias.
Quando o menino voltou falando que todas as borboletas da Terra passaram pela chácara de Siá Elpídia e queriam formar um tapete voador para transportá-lo ao sétimo céu, a mãe decidiu levá-lo ao médico.
Após o exame, o Dr. Epaminondas abanou a cabeça:
Não há nada a fazer, Dona Coló. Este menino é mesmo um caso de poesia.
Carlos Drummond de Andrade, in Rick e a girafa

Do cristianismo

O cristianismo é a forma acabada da perversão dos instintos que caracteriza o platonismo, repousando em dogmas e crenças que permitem à consciência fraca e escava escapar à vida, à dor e à luta, e impondo a resignação e a renúncia como virtudes. São os escravos e os vencidos da vida que inventaram o além para compensar a miséria; inventaram falsos valores para se consolar da impossibilidade de participação nos valores dos senhores e dos fortes; forjaram o mito da salvação da alma porque não possuíam o corpo; criaram a ficção do pecado porque não podiam participar das alegrias terrestres e da plena satisfação dos instintos da vida.

Friedrich Nietzsche

Cosmonauta na Terra

"A Terra é azul", disse Yuri Gagarin

Extremamente atrasada, reflito sobre os cosmonautas. Ou melhor, sobre o primeiro cosmonauta. Quase um dia depois de Gagarin, nossos sentimentos já estavam atrasados em contraposição à velocidade com que o acontecimento nos ultrapassava. Agora, então, é atrasadíssima que repenso no assunto. É um assunto difícil de se sentir.

Um dia desses um menino, advertido de que a bola com que brincava cairia no chão e amolaria os vizinhos de baixo, respondeu: ora, o mundo já é automático, quando uma mão joga a bola no ar, a outra já é automática e pega-a, não cai não.

A questão é que nossa mão ainda não é bastante automática. Foi com susto que Gagarin subiu, pois se o automático do mundo não funcionasse a bola viria mais do que transtornar os vizinhos de baixo. E foi com susto que minha mão pouco automática tremeu à possibilidade de não ser rápida bastante e deixar o “acontecimento cosmonauta” me escapar. A responsabilidade de sentir foi grande, a responsabilidade de não deixar cair a bola que nos jogaram.

A necessidade de tornar tudo um pouco mais lógico – o que de algum modo equivale ao automático – me faz tentar criteriosamente o bom susto que me pegou:

De agora em diante, me referindo à Terra, não direi mais indiscriminadamente “o mundo”. “Mapa mundial”, considerarei expressão não apropriada; quando eu disser “o meu mundo”, me lembrarei com um susto de alegria que também meu mapa precisa ser refundido, e que ninguém me garante que, visto de fora, o meu mundo não seja azul. Considerações: antes do primeiro cosmonauta, estaria certo alguém dizer, referindo-se ao próprio nascimento, “vim ao mundo”. Mas só há pouco tempo nascemos para o mundo. Quase encabulados.

Para vermos o azul, olhamos para o céu. A Terra é azul para quem a olha do céu. Azul será uma cor em si, ou uma questão de distância? Ou uma questão de grande nostalgia? O inalcançável é sempre azul.

Se eu fosse o primeiro astronauta, minha alegria só se renovaria quando um segundo homem voltasse lá do mundo: pois também ele vira. Porque “ter visto” não é substituível por nenhuma descrição: ter visto só se compara a ter visto. Até um outro ser humano ter visto também, eu teria dentro de mim um grande silêncio, mesmo que falasse. Consideração: suponho a hipótese de alguém no mundo já ter visto Deus. E nunca ter dito uma palavra. Pois, se nenhum outro viu, é inútil dizer.

O grande favor do acaso: estarmos ainda vivos quando o grande mundo começou. Quanto ao que vem: precisamos fumar menos, cuidar mais de nós, para termos mais tempo e viver e ver um pouco mais; além de pedirmos pressa aos cientistas – pois nosso tempo pessoal urge.

Clarice Lispector, in Todas as crônicas