segunda-feira, 23 de março de 2020

Os fazedores de fogo


O filhote os encontrou de repente. Fora culpa sua. Tinha sido descuidado. Deixara a caverna e correra até a corrente para beber água. Talvez não tivesse prestado atenção porque estava caindo de sono. (Passara a noite inteira na trilha da carne, e tinha acabado de acordar.) E o seu descuido talvez se devesse à familiaridade com a trilha até a água. Ele a percorrera tantas vezes, e nada jamais lhe acontecera.
Passou pelo pinheiro fulminado, cruzou a clareira e correu entre as árvores. Depois, no mesmo instante, viu e farejou. Diante dele, sentadas silenciosamente sobre as ancas, estavam cinco coisas vivas, muito diferentes de tudo o que já vira. Foi o seu primeiro vislumbre da humanidade. Mas, ao avistá-lo, os cinco homens não se ergueram, nem mostraram os dentes, nem rosnaram. Não se moveram, mas continuaram sentados ali, silenciosos e sinistros.
Tampouco o filhote se moveu. O instinto de sua natureza o teria impelido a disparar loucamente para longe, se não tivesse de repente e pela primeira vez crescido no seu interior um instinto contrário. Um grande temor reverente desceu sobre ele. Foi obrigado a ficar imóvel por uma sensação esmagadora de sua própria fraqueza e pequenez. Ali estava a supremacia e o poder, algo muito além do seu alcance.
O filhote nunca vira o homem, mas possuía um instinto a respeito do homem. De maneira vaga, reconhecia no homem o animal que conquistara pela luta a primazia sobre os outros animais da Floresta. Não era apenas com os seus próprios olhos, mas também com os olhos de seus antepassados que o filhote agora fitava o homem – com olhos que tinham circulado na escuridão ao redor de inumeráveis acampamentos perto do fogo no inverno, que tinham espiado de distâncias seguras e do centro de matagais o estranho animal de duas pernas que era senhor sobre as coisas vivas. O feitiço da sua herança apoderou-se do filhote, o medo e o respeito nascidos de séculos de luta e da experiência acumulada de gerações. A herança era imperiosa demais para um lobo que era apenas um filhote. Se fosse adulto, teria corrido para longe. Mas, sendo filhote, encolheu-se numa paralisia de medo, já revelando em parte a submissão que a sua espécie tinha demonstrado desde a primeira vez em que um lobo veio se sentar perto do fogo do homem para se aquecer.
Um dos índios se levantou, caminhou até o lobinho e curvou-se sobre ele. O filhote encolheu-se ainda mais rente ao chão. Era o desconhecido, objetivado por fim, em carne e osso, inclinando-se sobre ele e estendendo a mão para agarrá-lo. O pelo se eriçou involuntariamente, os lábios contorcendo-se para trás e revelando as pequenas presas. A mão, suspensa como sina acima dele, hesitou, e o homem falou rindo: “Wabam wabisca ip pit tah”. (“Olhem! Os caninos brancos!”)
Os outros índios riram alto e insistiram para que o homem pegasse o filhote. Enquanto a mão chegava cada vez mais perto, travou-se dentro do filhote uma raivosa batalha dos instintos. Ele experimentava dois grandes impulsos – ceder e lutar. A ação resultante foi uma solução de compromisso. Fez as duas coisas. Cedeu até a mão quase chegar a tocá-lo. Mas então lutou, os dentes lampejando numa dentada que os fez afundar na carne da mão. No momento seguinte, recebeu uma bofetada na cabeça que o derrubou de lado. Toda a força desapareceu do seu interior. Sua pequenez de filhote e o instinto de submissão dominaram. Sentou-se sobre os quadris e ganiu. Mas o homem da mão mordida estava brabo. O filhote recebeu uma bofetada no outro lado da cabeça. Com isso, sentou-se e ganiu mais alto do que nunca.
Os quatro índios riram mais alto, e até o homem que fora mordido começou a rir. Rodearam o filhote e riram dele, enquanto ele gemia o seu terror e a sua dor. No meio de seu choro, escutou alguma coisa. Os índios também escutaram. Mas o filhote sabia o que era, e com um último e longo gemido que soava mais como triunfo que como dor, cessou o barulho e esperou a chegada da mãe, da sua feroz e indômita mãe, que lutava e matava todas as coisas e nunca tinha medo. Ela rosnava enquanto corria. Escutara o choro do filhote e corria em disparada para salvá-lo.
Ela saltou no meio deles, sua maternidade ansiosa e militante tornando-a uma visão nada bela. Mas, para o filhote, o espetáculo de sua fúria protetora era agradável. Ele emitiu um gritinho alegre e saltou ao seu encontro, enquanto os animais-homens davam apressadamente vários passos para trás. A loba parou sobre o seu filhote, enfrentando os homens, com o pelo eriçado e um rosnado bramindo profundamente na garganta. A sua face estava distorcida e malévola, cheia de ameaças, o cavalete do nariz se enrugando da ponta até os olhos, de tão prodigioso que era o seu rosnado.
Foi então que se elevou um grito de um dos homens. – Kiche! – foi o que ele proferiu. Era uma exclamação de surpresa. O filhote sentiu a mãe encolher-se a esse som.
Kiche! – o homem gritou de novo, desta vez com aspereza e autoridade.
E então o filhote viu a mãe, a loba, a destemida, encolher-se até a barriga roçar o chão, choramingar, abanar o rabo, fazer sinais de paz. O filhote não conseguia compreender. Estava aterrorizado. O temor reverente aos homens precipitou-se mais uma vez sobre ele. O seu instinto fora verdadeiro. A mãe o confirmava. Ela também prestava submissão aos animais-homens.
O homem que tinha falado aproximou-se da loba. Colocou a mão sobre a sua cabeça, e a loba apenas se encolheu e chegou mais perto. Ela não mordeu, nem ameaçou morder. Os outros homens se aproximaram, rodearam a loba, apalparam e manusearam rudemente o seu corpo, ações que ela não tentou repelir. Estavam muito excitados, e faziam muito barulho com as bocas. Esse barulho não era indicação de perigo, concluiu o filhote, enquanto se agachava perto da mãe, de vez em quando ainda eriçando o pelo, mas fazendo o possível para se submeter.
Não é estranho – um índio estava dizendo. – O pai dela era um lobo. É verdade, a mãe era uma cachorra. Mas o meu irmão não a amarrava no meio do mato todas as três noites na época do cio? Assim o pai de Kiche foi um lobo.
Faz um ano, Castor Cinza, que ela fugiu – falou um segundo índio.
Não é estranho, Língua de Salmão – respondeu Castor Cinza. – Era a época da escassez, e não havia carne para os cachorros.
Ela viveu com os lobos – disse um terceiro índio.
Assim parece, Três Águias – respondeu Castor Cinza, pondo a mão sobre o filhote. – E este é o sinal da convivência.
O filhote rosnou um pouco ao toque da mão, e a mão recuou no ar para administrar uma bofetada. Com isso o filhote cobriu as presas e encolheu-se submissamente, enquanto a mão, ao retornar, esfregava atrás das suas orelhas e acariciava o lombo para cima e para baixo.
Este é o sinal da convivência – continuou Castor Cinza. – Está claro que Kiche é a sua mãe. Mas o seu pai era um lobo. Assim há nele pouco cachorro e muito lobo. As presas são brancas, e Caninos Brancos será o seu nome. Assim falei. Ele é o meu cachorro. Pois Kiche não era a cachorra do meu irmão? E o meu irmão não está morto?
O filhote, que assim recebeu um nome, deitou-se e observou. Por algum tempo, os animais-homens con tinuaram a fazer os seus sons com a boca. Depois Castor Cinza tirou uma faca da bainha que pendia ao redor de seu pescoço, entrou no matagal e cortou uma vara. Caninos Brancos observava. O índio chanfrou a vara em cada uma das pontas, e nos entalhes amarrou cordões de couro cru. Um dos cordões ele atou ao redor da garganta de Kiche. Depois a levou para um pinheiro pequeno, ao redor do qual amarrou o outro cordão.
Caninos Brancos seguiu e deitou-se ao lado da mãe. A mão de Língua de Salmão o alcançou e o fez rolar sobre o lombo. Kiche olhava ansiosa. Caninos Brancos sentiu o medo crescer dentro de si mais uma vez. Não pôde reprimir completamente um rosnado, mas não ameaçou morder. Com os dedos dobrados e afastados, a mão esfregou o seu estômago de um modo brincalhão e o fez rolar de um lado para o outro. Era ridículo e desgracioso, ficar ali deitado sobre o lombo com as patas esparramadas no ar. Além disso, era uma posição de uma impotência tão completa que toda a natureza de Caninos Brancos se revoltava contra ela. Não podia fazer nada para se defender. Se esse animal-homem pretendesse lhe fazer algum dano, Caninos Brancos sabia que não conseguiria escapar. Como poderia afastar-se com as quatro patas no ar? Mas a submissão dominou o seu medo, e ele apenas grunhiu suavemente. Esse grunhido ele não pôde reprimir, nem o animal-homem se indignou dando-lhe um tapa na cabeça. E, além disso, era estranha a situação, pois Caninos Brancos experimentava uma sensação misteriosa de prazer quando a mão o roçava de um lado para o outro. Quando foi rolado para o lado, deixou de grunhir; quando os dedos apertaram e cutucaram a base das suas orelhas, a sensação de prazer aumentou; e quando, com uma coçada e esfregada final, o homem o deixou e afastou-se, todo o medo tinha desaparecido de Caninos Brancos. Ele iria conhecer o medo muitas vezes nas suas lidas com o homem, mas o que em última análise conservou dentro de si foi uma lembrança da convivência sem temores com o homem.
Depois de algum tempo, Caninos Brancos escutou barulhos estranhos se aproximando. Foi rápido na classificação, pois logo reconheceu que eram barulhos do animal-homem. Alguns minutos mais tarde apareceu o resto da tribo, enfileirada na marcha, serpeando lentamente pelo caminho. Havia mais homens e muitas mulheres e crianças, quarenta almas, e todos com cargas pesadas de equipamentos e aparelhagem para acampar. Havia igualmente muitos cachorros; e esses, à exceção dos filhotes parcialmente crescidos, carregavam também equipamento para acampar. Sobre os lombos, em sacos bem amarrados ao redor do corpo, os cachorros carregavam de nove a treze quilos de peso.
Caninos Brancos nunca vira cachorros antes, mas à vista desses sentiu que eram da sua espécie, só que um pouco diferentes. Mas eles demonstraram pouca diferença do lobo, quando descobriram o filhote e a mãe. Houve uma investida. Caninos Brancos eriçou o pelo, rosnou e mordeu diante da onda voraz de cachorros que se aproximava, e foi derrubado e pisoteado, sentindo a cutilada aguda de dentes no seu corpo, ele próprio mordendo e rasgando patas e barrigas acima da sua cabeça. Houve um grande tumulto. Ele podia escutar o rosnado de Kiche, enquanto ela lutava por sua causa; e podia ouvir os gritos dos animais-homens, o som dos paus golpeando os corpos, os ganidos de dor dos cachorros atingidos.
Apenas alguns segundos e ele já voltava a se firmar sobre as patas. Agora podia ver os animais-homens enxotando os cachorros com paus e pedras, defendendo-o, salvando-o dos dentes selvagens da sua própria espécie, que de certa maneira não era a sua espécie. E embora não houvesse razão no seu cérebro para uma concepção clara de algo tão abstrato como a justiça, ainda assim, à sua maneira, ele sentia a justiça dos animais-homens, reconhecendo-os pelo que eram – os criadores e os executores da lei. Além disso, apreciava o poder com que administravam a lei. Ao contrário de qualquer animal que já conhecera, eles não mordiam nem arranhavam. Impunham a sua força viva com o poder de coisas mortas. As coisas mortas cumpriam as suas ordens. Assim, varas e pedras, dirigidas por essas estranhas criaturas, saltavam pelo ar como se fossem coisas vivas, infligindo golpes dolorosos aos cachorros.
Aos seus olhos era um poder inusitado, um poder inconcebível e fora do natural, um poder que era divino. Pela sua própria natureza, Caninos Brancos jamais poderia saber alguma coisa sobre os deuses; quando muito, podia saber que havia coisas que estavam além do seu conhecimento; mas a admiração e o temor reverente que sentia por esses animais-homens parecia de certo modo a provável admiração e temor reverente do homem diante de alguma criatura celeste, sobre o cume de uma montanha, arremessando raios com as duas mãos contra um mundo atônito.
O último cachorro fora repelido. O tumulto esmoreceu. E Caninos Brancos lambeu as feridas e meditou sobre o que acontecera, sua primeira prova da crueldade do bando e sua apresentação ao bando. Ele nunca imaginara que a sua própria espécie consistisse em mais outro animal além de Caolho, sua mãe e ele próprio. Eles tinham constituído uma espécie à parte, e ali, abruptamente, descobria muito mais criaturas aparentemente da sua espécie. E havia um ressentimento subconsciente de que esses animais, sua própria espécie, à primeira vista o tivessem atacado de rijo e tentado destruí-lo. Da mesma forma, ele se ressentia de sua mãe ser amarrada numa vara, mesmo que isso fosse obra dos animais-homens superiores. Isso sabia a uma armadilha, a uma sabotagem. Mas de armadilha e de cativeiro ele nada sabia. A liberdade de passear, correr e dormir conforme sentisse vontade era uma herança sua, e ali ela estava sendo violada. Os movimentos da mãe estavam restringidos ao comprimento de uma vara, e pelo comprimento dessa mesma vara ele estava restringido, pois ainda não superara a necessidade de ficar ao lado da mãe.
Não gostou. Tampouco gostou quando um pequeno animal-homem pegou a outra ponta da vara e levou Kiche cativa atrás de si, e atrás de Kiche seguiu Caninos Brancos, muito perturbado e preocupado com essa nova aventura em que tinha entrado.
Desceram o vale da corrente, indo muito além das explorações mais longínquas feitas por Caninos Brancos, até chegarem ao fim do vale, onde a corrente desembocava no rio Mackenzie. Ali, onde algumas canoas estavam escondidas em estacas que subiam alto no ar, e onde ficavam as armações para secar os peixes, foi montado o acampamento. E Caninos Brancos a tudo fitava com olhos admirados. A superioridade desses animais-homens aumentava a cada momento. Havia a sua supremacia sobre todos esses cachorros de presas afiadas. Isso exalava poder. Porém, mais impressionante para o filhote de lobo era a sua supremacia sobre as coisas não vivas; a sua capacidade de imprimir movimento às coisas que não se moviam; a sua capacidade de mudar a própria face do mundo.
Foi essa última característica que o impressionou sobremaneira. O levantamento das estruturas prendeu a sua atenção, mas isso em si mesmo não era tão extraordinário, já que era feito pelas mesmas criaturas que arremessavam paus e pedras a grandes distâncias. Mas, quando as estruturas foram transformadas em tendas ao serem cobertas com panos e peles, Caninos Brancos ficou assombrado. Era o volume colossal que o impressionava. As tendas erguiam-se ao seu redor, por todos os lados, como alguma monstruosa forma de vida de rápido crescimento. Ocupavam quase toda a circunferência de seu campo de visão. Ele estava com medo das tendas. Elas avultavam sinistramente acima de sua cabeça; e, quando a brisa as ondulava em movimentos gigantescos, ele se encolhia de medo, mantendo os olhos cautelosamente fixos nos panos e peles, pronto a sair pulando se tentassem precipitar-se sobre ele.
Mas, em pouco tempo, o seu medo das tendas passou. Via as mulheres e as crianças entrarem e saírem sem nenhum dano, e via os cachorros tentando frequentemente entrar e sendo enxotados com palavras ásperas e pedras voadoras. Depois de um tempo, saiu do lado de Kiche e arrastou-se cautelosamente para a parede da tenda mais próxima. Era a curiosidade do crescimento que o forçava a avançar – a necessidade de aprender, viver e fazer, que traz experiência. Os últimos poucos centímetros até a parede da tenda foram vencidos com uma lentidão e precaução dolorosas. Os acontecimentos do dia o tinham preparado para que o desconhecido se manifestasse das maneiras mais estupendas e impensáveis. Por fim, o focinho tocou a lona. Ele esperou. Nada aconteceu. Então sentiu o cheiro do tecido estranho saturado de odores humanos. Fechou os dentes sobre a lona e deu um puxão suave. Nada aconteceu, embora as porções adjacentes da tenda se movessem. Puxou com mais força. Houve um movimento maior. Era delicioso. Puxou ainda com mais força, e repetidas vezes, até que toda a tenda estava em movimento. Então o grito agudo de uma índia lá dentro o mandou rapidamente de volta para Kiche. Mas, depois disso, ele já não tinha medo dos volumes gigantescos das tendas.
Um momento mais tarde, já se afastava novamente da mãe. A vara ficava amarrada a uma pequena estaca no chão, e ela não podia segui-lo. Um filhote um pouco maior e mais velho do que ele aproximou-se lentamente de Caninos Brancos, com uma arrogância beligerante. O nome do filhote, como o lobinho mais tarde escutaria nos vários chamados dos índios, era Lip-lip. Ele tivera experiências em lutas de filhotes e já era um pouco valentão.
Lip-lip era da mesma espécie de Caninos Brancos e, sendo apenas um filhote, não parecia perigoso; assim Caninos Brancos preparou-se para encontrá-lo num espírito amistoso. Mas quando o caminhar do estranho se tornou um andar de patas duras e os lábios deixaram visíveis os dentes, Caninos Brancos também enrijeceu e respondeu com lábios arreganhados. Eles meio que circularam um ao redor do outro, tentativamente, rosnando e eriçando o pelo. Isso durou vários minutos, e Caninos Brancos estava começando a gostar da brincadeira, como uma espécie de jogo. Mas de repente, com uma rapidez extraordinária, Lip-lip saltou para perto, deu uma mordida dilacerante, e saltou para longe mais uma vez. A mordida se fechou sobre o ombro que fora machucado pelo lince e que ainda estava profundamente dolorido até perto do osso. A surpresa e a dor provocaram um ganido em Caninos Brancos, porém no momento seguinte, num ímpeto de raiva, ele já estava sobre Lip-lip, mordendo com maldade.
Mas Lip-lip tinha passado a sua vida no acampamento e lutado com muitos outros filhotes. Três vezes, quatro vezes e meia dúzia de vezes, os seus dentinhos afiados marcaram o recém-chegado, até que Caninos Brancos, ganindo desavergonhadamente, fugiu para a proteção da mãe. Foi a primeira das muitas lutas que ele teria com Lip-lip, pois eles foram inimigos desde o início, nascidos assim, com naturezas destinadas a colidir para sempre.
Kiche tranquilizou Caninos Brancos lambendo-o com a sua língua, e tentou obrigá-lo a ficar junto dela. Mas a curiosidade do filhote era desenfreada, e vários minutos mais tarde ele já se aventurava numa nova exploração. Encontrou um dos animais-homens, Castor Cinza, acocorado fazendo alguma coisa com varas e musgos secos espalhados à sua frente no chão. Caninos Brancos aproximou-se e observou. Castor Cinza emitia barulhos com a boca que Caninos Brancos interpretou como não hostis, por isso chegou ainda mais perto.
As mulheres e as crianças carregavam mais varas e ramos para Castor Cinza. Era evidentemente a atividade do momento. Caninos Brancos entrou no meio do grupo até tocar o joelho de Castor Cinza de tão curioso que estava, e já esquecido de que esse era um terrível animal-homem. De repente viu uma coisa estranha semelhante a uma névoa surgir no meio das varas e musgo embaixo das mãos de Castor Cinza. Depois, entre as próprias varas, surgiu uma coisa viva, torcendo-se e revirando-se, de uma cor parecida com a cor do sol no céu. Caninos Brancos nada sabia do fogo. Atraía-o assim como a luz na boca da caverna o atraíra na sua primeira infância. Arrastando-se, deu vários passos na direção da chama. Escutou Castor Cinza dar umas risadinhas acima dele, e sabia que o som não era hostil. Foi então que o seu focinho tocou a chama e, no mesmo instante, a língua pequena saiu para provar a luz.
Por um momento ficou paralisado. O desconhecido, à espreita no meio das varas e musgos, agarrava-o selvagemente pelo focinho. Ele se arrastou para trás, explodindo numa série atônita de gemidos. Ao escutar o som, Kiche pulou rosnando até a ponta da sua vara, e ali rosnou terrivelmente, porque não podia ir em seu auxílio. Mas Castor Cinza riu alto, deu palmadas nas coxas, e contou o que acontecera a todo o resto do acampamento, até que todos estavam rindo às gargalhadas. Mas Caninos Brancos sentou-se sobre os quadris e ganiu, ganiu, uma figurinha desamparada e insignificante no meio dos animais-homens.
Era a pior dor que já provara. O focinho e a língua tinham sido chamuscados pela coisa viva, da cor do sol, que crescera sob as mãos de Castor Cinza. Ele gritava sem parar, e cada novo gemido era saudado por explosões de risadas dos animais-homens. Tentou acalmar o focinho com a língua, mas a língua também estava queimada, e os dois machucados entrando em contato produziram uma dor ainda maior. Com isso, ele passou a gritar mais desesperada e desamparadamente do que nunca.
E então a vergonha o cobriu. Conheceu o riso e o seu significado. Não nos é dado saber como alguns animais conhecem o riso e sabem quando alguém está rindo deles, mas foi dessa maneira que Caninos Brancos o conheceu. E ele sentiu vergonha de que os animais-homens rissem dele. Virou-se e fugiu, não da dor causada pelo fogo, mas do riso que penetrava ainda mais profundamente e doía no seu espírito. E fugiu para Kiche – enfurecida na ponta da sua vara como um animal enlouquecido – para Kiche, a única criatura no mundo que não estava rindo dele.
O crepúsculo baixou e veio a noite, e Caninos Brancos ficou deitado ao lado da mãe. O focinho e a língua ainda doíam, mas ele estava perplexo com uma dificuldade maior. Tinha saudades de casa. Sentia um vazio dentro de si, uma necessidade do silêncio e da quietude da corrente e da caverna no rochedo. A vida se tornara populosa demais. Havia tantos animais-homens, os homens, as mulheres e as crianças, todos produzindo barulhos e irritações. E havia os cachorros, sempre às turras, brigando, explodindo em tumultos e criando confusões. A serena solidão da única vida que ele tinha conhecido desaparecera. Aqui o próprio ar palpitava com vida. Vibrava e zumbia sem parar. Mudando continuamente a intensidade e variando abruptamente de altura, os sons atingiam os seus nervos e sentidos, tornando-o nervoso, inquieto e preocupado com uma iminência perpétua de acontecimentos.
Ele observava os animais-homens irem e virem, movendo-se ao redor do acampamento. De um modo que lembrava remotamente a maneira como os homens olham para os deuses que eles próprios criam, assim Caninos Brancos olhava para os animais-homens à sua frente. Eram criaturas superiores; na verdade, deuses. Para a sua vaga compreensão, eles criavam tantas maravilhas quanto os deuses para os homens. Eram criaturas de poder, possuindo toda sorte de potências desconhecidas e impossíveis – impondo obediência a tudo o que se movia, imprimindo movimento ao que não se movia, e fazendo a vida, a vida mordaz e da cor do sol, crescer no meio dos musgos secos e da madeira. Eram os fazedores de fogo! Eram deuses!
Jack London, in Caninos Brancos

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