Jovem
em Mumbai, Índia, no primeiro dia de quarenta imposta no país.
INDRANIL MUKHERJEE / AFP (AFP)
O futuro está em disputa: pode ser Gênesis ou Apocalipse (ou apenas mais da mesma brutalidade)
No
princípio era o vírus. Coronavírus. Em menos de dois meses após a
primeira morte, registrada na China em 9 de janeiro, ele atravessou o
mundo a bordo de nossos corpos que voam em aviões. Tornou-se
onipresente no planeta, ainda que tão invisível quanto certos
deuses para olhos humanos. Hoje, 1,7 bilhão de pessoas, cerca de um
quinto da população global, está em isolamento. Escolas,
restaurantes, cinemas e até shoppings cerraram as portas, fronteiras
de países e de continentes fecharam, aviões se esvaziaram,
presidentes maníacos finalmente foram reconhecidos como presidentes
maníacos, neoliberais foram vistos clamando —“cadê o Estado?
cadê o Estado?” —, ardorosos defensores dos planos privados de
saúde compartilharam campanhas pelo fortalecimento do SUS,
terraplanistas exigiram respostas da ciência. Pelas janelas do
Facebook, Twitter, Whatsapp e Instagram, pessoas decretam: o mundo
nunca mais será o mesmo.
Não
será. Mas talvez seguirá sendo bastante do mesmo. Além de nossa
sobrevivência, o que disputamos neste momento é em que mundo
viveremos e que humanos seremos depois da pandemia. Essas respostas
vão depender do modo como vivermos a pandemia. O depois, o
pós-guerra global do nosso tempo, vai depender de como escolhemos
viver a guerra. Não é verdade que na guerra não há escolhas. A
verdade é que, na guerra, as escolhas são muito mais difíceis e as
perdas decorrentes dela são muito maiores do que em tempos normais.
Na
guerra, temos dois caminhos pessoais que determinam o coletivo: nos
tornarmos melhores do que somos ou nos tornarmos piores do que somos.
Esta é a guerra permanente que cada um trava hoje atrás da sua
porta. Momentos radicais expõem uma nudez radical. Isolados, é
também com ela que nos viramos. O que o espelho pode mostrar não é
a barriga flácida. Pouco importa, já não há onde nem para quem
desfilar barrigas-tanquinho. O duro é encarar um caráter flácido,
uma vontade desmusculada, um desejo sem tônus que antes era
mascarado pela espiral dos dias. O duro é ser chamado a ser e ter
medo de ser. Porque é isso que momentos como este fazem: nos chamam
a ser.
Em
tempos mais normais, podemos fingir que não escutamos o chamado a
ser. Cobrimos essa voz com automatismos, a vida se resume a consumir
a vida consumindo o planeta.
Consumidores não são, já que consomem o ser. E agora, quando já
não se pode consumir, porque logo pode não haver o que consumir nem
quem possa produzir o que consumir, como é que se aprende a separar
os verbos? Como se faz um consumidor se tornar um ser?
Se
usamos a palavra guerra, precisamos olhar cuidadosamente para o
inimigo. É o vírus, essa criatura que parece
uma bolinha micróspica cheia de
pelos, quase fofa? É o vírus, esse organismo que só segue o
imperativo de se reproduzir? Penso que não. O vírus não tem
consciência, não tem moral, não tem escolha. Vamos precisar
derrotá-lo em nossos corpos, neutralizá-lo para reiniciar isso que
chamamos de o outro mundo que virá. Tudo indica, porém, que outras
pandemias acontecerão, outras mutações. A forma como vivemos neste
planeta nos tornou vítimas de pandemias. O inimigo somos nós. Não
exatamente nós, mas o capitalismo que nos submete a um modo
mortífero de viver. E, se nos submete, é porque, com maior ou menor
resistência, o aceitamos. Escapar do vírus da vez poderá não nos
salvar do próximo. O modo de viver precisa mudar. Nossa sociedade
precisa se tornar outra.
O
impasse imposto pela pandemia não é novo. É o mesmo impasse
colocado há anos, décadas, pela
emergência climática. Os
cientistas —e mais recentemente os adolescentes— repetem e gritam
que é preciso mudar urgentemente o jeito de viver ou estaremos
condenados ao desaparecimento de parte da população. E, quem
sobreviver, estará condenado a uma existência muito pior num
planeta hostil.
Todos
os dados mostram que a Terra, esta que segue redonda, está
superaquecendo em níveis incompatíveis com a vida de muitas
espécies. Esse superaquecimento mudará radicalmente —para pior—
o nosso habitat. Todas as informações científicas apontam que é
preciso parar de devorar o planeta, que há que se mudar radicalmente
os padrões de consumo, que a ideia de crescimento infinito é uma
impossibilidade lógica num mundo finito. É um fato comprovado que
os humanos, pela emissão de carbono desde a revolução industrial,
cortando árvores, queimando carvão e depois petróleo, se tornaram
uma força de destruição capaz de alterar o clima do planeta.
Desde
o segundo semestre de 2018 adolescentes
do mundo inteiro abandonam as
escolas toda sexta-feira para gritar nas ruas que os adultos estão
roubando seu futuro. Eles dizem: parem de consumir, fiquem no chão,
nosso planeta não aguenta mais tanta emissão de carbono. Dizem
ainda, literalmente: “vocês estão cagando no nosso futuro”.
Greta Thumberg, a jovem ativista
sueca, avisou repetidamente:
“nossa casa está em chamas”. Acordem.
Está
tudo escrito, falado, repetido, documentado. Ninguém pode dizer que
não sabe. Bem, Bolsonaro, o maníaco que nos governa, sempre pode,
porque diz e desdiz a cada minuto.
Mas, sério, quem ainda aguenta falar nesse demente, que está
criminosamente aumentando o risco de morte dos brasileiros, a não
ser para gritar “Fora!”? Isolemos esse boçal, deixemos Bolsonaro
procurando onde estão suas orelhas, aprendendo a como enfiar a
máscara no rosto sem tapar os olhos.
O
efeito da pandemia é o efeito concentrado, agudo, do que a crise
climática está produzindo de
forma muito mais lenta. É como se o vírus desse uma palhinha do que
viveremos logo mais. Conforme os níveis de superaquecimento global,
chegaremos a um estágio de transformação do clima e, por
consequência do planeta, para o qual não há volta, não há
vacina, não há antídoto. O planeta será outro.
É
por isso que cientistas,
intelectuais, intelectuais, indígenas e ativistas climáticos têm
gritado para uma maioria que se
finge de surda, para não ter que sair do seu conforto mudando velhos
hábitos, que é preciso alterar os padrões de consumo radicalmente,
que é preciso pressionar radicalmente os governantes para políticas
públicas imediatas, que é preciso combater radicalmente as grandes
corporações que destroem o planeta. Mas, como a crise climática é
lenta, sempre foi possível fingir que não estava acontecendo,
chegando ao paroxismo de eleger negacionistas como Jair Bolsonaro,
Donald Trump e toda a conhecida corja de destruidores do mundo.
O
vírus não permite fingimentos. Ele possivelmente saltou de um
morcego, espécie cujo habitat também destruímos, para se hospedar
no organismo dos humanos. Nada mais fez do que tocar sua vida de
vírus. De repente, homens e mulheres do mundo inteiro que fingiam
não ter nem corpo nem limites, transbordando na internet, tiveram
que se haver com a própria carne e com os próprios contornos. Já
não há mais como escapar do corpo. E já não há mais como
permanecer refestelado no próprio umbigo.
Toda
a ilusão de que o mundo é controlado pelos humanos se desfez em
tempo recorde. E a humanidade finalmente descobriu que há um mundo
além de si, povoado por outros que podem até mesmo acabar com a
nossa espécie. Outros que a gente nem consegue enxergar. No nosso
furor de espécie dominante, extinguimos
tantas outras e tantos modos de
vida, trancamos animais maravilhosos em jaulas, criamos campos de
concentração de bois, porcos e galinhas, envenenamos peixes com
mercúrio apenas porque gostamos de ouro, promovemos holocaustos
diários para nos alimentar, estupramos vacas com aparelhos porque
desejamos comer seus tenros bebês em refinadas refeições e
desejamos roubar seu leite dia após dia, arrancamos a floresta para
fazer campo de soja para alimentar animais escravizados. Podíamos
tudo.
E
aí vem o vírus, que não está interessado em nos passar nenhuma
mensagem, só está mesmo cuidando da própria vida, e mostra: vocês,
humanos, não estão sozinhos nesse planeta nem têm o controle que
acreditam ter. E então aqueles que debochavam dos cientistas do
Clima e da Terra, chamavam a crise climática de “complô
marxista”, querem agora saber como a ciência pode salvá-los da
bolinha peluda. Até tentaram inventar que o coronavírus é uma
“gripezinha”, “uma
fantasia”, “uma histeria”.
Mas o povo brinca com tudo e está pronto a acreditar em qualquer
bobagem, até em Terra Plana, desde que lhe garantam seguir no seu
modo zumbi. Mas o povo não brinca com saúde. Quando o assunto é
saúde, até a Terra Plana dá voltas.
Menciono
“humanidade”, “povo”, “população”. Mas não há
homogeneidade aí, não existe um genérico chamado “humano”.
Assim como não estamos todos no mesmo barco. Nem para o coronavírus
nem para a crise climática. Mais uma vez, a comparação entre
coronavírus e crise do clima faz todo o sentido. A ONU criou o
conceito de “apartheid
climático”, um reconhecimento de que as desigualdades de raça,
sexo, gênero e classe social são determinantes também para a
mudança do clima, que as reproduz e as amplia. Aqueles que serão os
mais atingidos pelo superaquecimento global — negros
e indígenas, mulheres e pobres —
foram os que menos contribuíram para provocar a emergência
climática. E aqueles que produziram a crise climática ao consumir o
planeta em grandes porções e proporções — os brancos ricos de
países ricos, os brancos ricos de países pobres, os homens, que nos
últimos milênios centralizaram as decisões, nos trazendo até
aqui— são os que serão menos afetados por ela. São esses que já
passaram a erguer muros e a fechar as fronteiras muito antes do
coronavírus porque temem os refugiados climáticos que criaram e que
serão cada vez mais numerosos no futuro bem próximo.
Na
pandemia de coronavírus há o mesmo apartheid.
É bem explícito qual é a população que tem o direito a não ser
contaminada e qual é a população que aparentemente
pode ser contaminada. Não é
coincidência que a primeira morte
por coronavírus no Rio de Janeiro
foi uma mulher, empregada doméstica, a quem a “patroa” nem
reconheceu o direito à dispensa remunerada do trabalho, para fazer o
necessário isolamento, nem achou necessário contar que poderia
estar contaminada por coronavírus, cujos sintomas já sentia depois
de voltar de um Carnaval na Itália. Essa primeira morte no Rio é o
retrato do Brasil e das relações
entre raça e classe no país,
expostas em toda a sua brutalidade criminosa pela radicalidade de uma
pandemia.
O
espantoso é que a necessidade de
muitos de ter sua casa limpa e a comida
pronta pela empregada doméstica, a quem negaram o direito ao
isolamento remunerado, é maior até do que o instinto de
sobrevivência. Isso nos informa muito sobre uma parcela da sociedade
brasileira, esta em que os porteiros continuam abrindo a porta dos
edifícios para os moradores não tocarem eles mesmos na maçaneta,
quando vão ao jardim arejar ou ao supermercado comprar comida. Focar
sem empregados domésticos parece ser mais trágico
do que enfrentar o vírus para uma parcela das classes média e alta
brasileiras. Esta última muito acostumada a acreditar-se a salvo do
pior, porque em geral está.
O
poder de devastação do vírus é determinado pelas escolhas dos
governos e da população que elegeu os governantes. Neste momento,
os brasileiros estão tendo que se haver com a escolha de sucatear o
SUS, com a escolha de reduzir o investimento em programas sociais que
pudessem reduzir a desigualdade, com a escolha de não fazer reforma
agrária nem redistribuição de renda, com a escolha de não
priorizar o saneamento básico e a moradia digna. Com a escolha de
fazer teto para gastos públicos também em áreas
essenciais como saúde e educação.
Os
brasileiros estão sendo obrigados a se haver, principalmente, com a
escolha de fazer do “Mercado” um deus-entidade que se
autorregula. Se o Mercado foi a
explicação de tudo para as
medidas mais brutais defendidas por essa praga persistente chamada
“economistas neoliberais” ou “ultraliberais”, que se
autodeclararam com autoridade e poder para determinar todas as áreas
de nossa vida, cadê o Mercado agora? Por que não pedem que o
Mercado resolva a pandemia? Ao contrário, os representantes do
Mercado estão demitindo e dispensando os empregados e pedindo
ajuda emergencial do Governo para
não falir.
Mas,
não se iludam. Assim que a pandemia passar, o Mercado voltará com
todo o seu poder de oráculo para, por meio de suas sacerdotisas, os
economistas neoliberais ou ultraliberais, nos ditar tudo o que temos
que fazer para sair da recessão. Este ônus, como sempre, será
dividido igualmente entre os mais pobres.
O
vírus —e não as péssimas escolhas— será o culpado de todas as
mazelas. Até o corona, como sabemos, a economia do mundo capitalista
e do Brasil de Paulo Guedes estava
uma maravilha, parece até que
domésticas estavam planejando uma excursão para a Disney quando
foram impedidas pelo maldito vírus com nome de ducha. E, claro, o
maníaco do Planalto vai dizer que não é nem ele nem seu Posto
Ipiranga os incompetentes, mas “a histeria” com a “gripezinha”.
Nada
está dado, porém. Não é só o futuro que está em disputa, mas o
presente. Isoladas em casa, as pessoas passaram a fazer o que não
faziam antes: enxergar umas as
outras, reconhecer umas as outras,
cuidar umas das outras.
Justo agora, quando ficou muito mais difícil, parece ter se tornado
mais fácil alcançar o outro. Quem criou esse conceito —
“isolamento social”—
estava com falha de raciocínio. O que temos que fazer e muitos estão
fazendo é “isolamento físico”, como apontou no Twitter o
sociólogo Ben Carrington. O que está acontecendo hoje é exatamente
o contrário de isolamento social. Fazia muito tempo que as pessoas,
no mundo inteiro, não socializavam tanto.
No
Brasil, o grande momento de socialização é o panelaço
de “Fora Bolsonaro!” nas
janelas. Em outros países têm
música, até poesia, nas sacadas.
Para os brasileiros, mostrar que se encontraram com a realidade do
outro é reconhecer a realidade de que botaram um maníaco no
Planalto e precisam tirá-lo de lá se quiserem sobreviver. Mas
também por aqui há festas de aniversário com bolinho na porta e
vizinhos cantando parabéns das janelas, jovens fazendo compras para
os velhos do prédio, avós almoçando com as netas pelo FaceTime,
famílias e grupos de amigos conversando por aplicativos como há
tempo não faziam. É incrível, mas finalmente os humanos
descobriram que podem usar o celular para se encontrarem, em vez de
se isolarem cada um no seu aparelho em torno de mesas de bares e
restaurantes.
Muitas
das ações da direita e da extrema direita no Brasil dos últimos
anos tiveram como objetivo neutralizar e sepultar uma insurreição
das periferias, no sentido mais amplo, que começava a questionar, de
forma muito contundente, os privilégios de raça e de classe.
Começava a reivindicar sua justa centralidade. Marielle
Franco era um exemplo icônico
destes Brasis insurgentes que já não aceitavam o lugar subalterno e
mortífero ao qual haviam sido condenados. A pandemia mostrou
explicitamente que a rebelião continua viva. O Brasil das elites
boçais, aliado à nova boçalidade representada pelos mercadores da
fé alheia, não conseguiu matar a insurreição. O “Manifesto
das Filhas e dos Filhos das Empregadas Domésticas e das Diaristas,”
afirmando que não permitiriam que os patrões deixassem suas mães
morrer pelo coronavírus, foi talvez o grito mais potente deste
momento, impensável apenas alguns anos atrás.
Dezenas
de “vaquinhas” estão em curso, grande parte delas organizadas a
partir das favelas e das periferias, para garantir alimentação e
produtos de limpeza para a parcela da população a quem o direito ao
isolamento é sequestrado pela desigualdade brasileira. Em geral, o
lema é “Nós por Nós”: séculos de história provaram que só
os explorados e os escravos podem salvar a si mesmos.
Alguns
organizadores dessas campanhas temem que o tempo dos corações
abertos, onde brotam margaridas de solidariedade, pode acabar em
algumas semanas, quando a comida escassear e a fome se estabelecer,
quando o medo de o dinheiro acabar, para aqueles que ainda têm
dinheiro mas não sabem por quanto tempo, empedre veias e artérias,
quando o número de casos estiver tão fora do controle que o sistema
de saúde implodir. É lá, neste lugar ao qual possivelmente ainda
chegaremos, que vamos definir quem de fato somos —ou quem queremos
ser. Então saberemos. Não me parece que, desta vez, as pessoas
aceitarão morrer como gado. Em especial, as mesmas pessoas de
sempre.
A
consciência da própria mortalidade costuma ter um efeito muito
poderoso sobre as subjetividades. Filósofos têm disputado a
interpretação do que será ou pode ser o mundo do pós-coronavírus.
O esloveno Slavjoj Zizek
acredita no poder subversivo do vírus, que pode ter dado um golpe
mortal no capitalismo: “Talvez
outro vírus muito mais benéfico também se espalhe e, se tivermos
sorte, irá nos infectar: o vírus do pensar em uma sociedade
alternativa, uma sociedade para além dos Estados-nação, uma
sociedade que se atualiza nas formas de solidariedade e cooperação
global”.
O
sul-coreano Byung-Chul Han,
que dá aulas na Universidade de Artes de Berlim, acredita que Zizek
está errado. “Após a pandemia, o
capitalismo continuará com ainda mais pujança.
E os turistas continuarão a
pisotear o planeta,”, afirma. “A
comoção é um momento propício que permite estabelecer um novo
sistema de Governo. Também a instauração do neoliberalismo veio
precedida frequentemente de crises que causaram comoções. É o que
aconteceu na Coreia e na Grécia. Espero que após a comoção
causada por esse vírus não chegue à Europa um regime
policial digital como o chinês.
Se isso ocorrer, como teme Giorgio Agamben, o estado de exceção
passaria a ser a situação normal. O vírus, então, teria
conseguido o que nem mesmo o terrorismo islâmico conseguiu
totalmente”.
Mas
também ele se aproxima da ideia de uma outra sociedade possível no
pós-guerra pandêmica: “O vírus não vencerá o capitalismo. A
revolução viral não chegará a ocorrer. Nenhum vírus é capaz de
fazer a revolução. O vírus nos isola e individualiza. Não gera
nenhum sentimento coletivo forte. De alguma maneira, cada um se
preocupa somente por sua própria sobrevivência. A solidariedade que
consiste em guardar distâncias mútuas não é uma solidariedade que
permite sonhar com uma sociedade diferente, mais pacífica, mais
justa. Não podemos deixar a
revolução nas mãos do vírus.
Precisamos acreditar que após o vírus virá uma revolução humana.
Somos NÓS, PESSOAS dotadas de RAZÃO, que precisamos repensar e
restringir radicalmente o capitalismo destrutivo, e nossa ilimitada e
destrutiva mobilidade, para nos salvar, para salvar o clima e nosso
belo planeta”.
Penso
que a beleza que ainda resta no
mundo é justamente que nada está
dado enquanto ainda estivermos vivos. O vírus, que arrancou todos do
lugar, independentemente do polo político, está aí para nos
lembrar disso. A beleza é que, de repente, um vírus devolveu aos
humanos a capacidade de imaginar um futuro onde desejam viver.
Se
a pandemia passar e ainda estivermos vivos, será no momento de
recompor as humanidades que poderemos criar uma sociedade nova. Uma
sociedade capaz de entender que o dogma do crescimento nos trouxe até
este momento, uma sociedade preparada para compreender que qualquer
futuro depende de parar de esgotar o que chamamos de recursos
naturais —e que os indígenas chamam de mãe, pai, irmão.
O
futuro está em disputa. No amanhã, demorando ou não a chegar,
saberemos se a parte minoritária, mas dominante, da humanidade
seguirá sendo o vírus hediondo e suicida, capaz de exterminar a
própria espécie ao destruir o planeta-corpo que a hospeda. Ou se
barraremos essa força de destruição ao nos inventarmos de outro
jeito, como uma sociedade consciente de que divide o mundo com outras
sociedades. Saberemos, após tantas especulações, se o que vivemos
é Gênesis ou Apocalipse, na
interpretação do senso comum. Ou
nada tão grandiloquente, mas imensamente decepcionante: a reedição
de nossa invencível capacidade de adaptação ao pior, com a
imediata adesão aos discursos salvacionistas que já nos
escravizaram tantas vezes.
A
pandemia de coronavírus revelou que somos capazes de fazer mudanças
radicais em tempo recorde. A
aproximação social com isolamento físico pode nos ensinar que
dependemos uns dos outros. E por isso precisamos nos unir em torno de
um comum global que proteja a única casa que todos temos. O vírus,
também um habitante deste planeta, nos lembrou de algo que tínhamos
esquecido: os outros existem. Às vezes, eles são chamados de
Covid-19.
Eliane
Brum, in
www.elpais.com.br. Acesse aqui.
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