domingo, 16 de fevereiro de 2020

Os jagunços companheiros


Permeio com quantos, removido no estatuto deles, com uns poucos me acompanheirei, daqueles jagunços, conforme que os anjos-da-guarda. Só quase a boa gente. Sendo que são, por todos, estes: Capixúm ― caboclo sereno, viajado, filho dos gerais de São Felipe; Fonfrêdo ― que cantava todas as rezas de padre, e comia carne de qualidade nenhuma, e que nunca dizia de onde era e viera; o que rimava verso com ele: Sesfrêdo, desse já lhe contei; o Testa-em-Pé, baiano ladino, chupava muito; o Paspe, vaqueiro jaibano, o homem mais habilidoso e serviçal que já topei nesta minha vida; Dadá Santa-Cruz, dito o Caridoso, queria sempre que se desse resto de comida à gente pobre com vergonha de vir pedir; o Carro-de-Boi, gago, gago. O Catôcho, mulato claro ― era curado de bala. Lindorífico, chapadeiro minas-novense, com mania de aforrar dinheiro. O Diôlo, preto de beiço maior. Juvenato, Adalgizo, o Sangue-de-Outro. Ei, tantos; para quê que eu fui querer começar a descrever? Dagobé, o Eleutério, Pescoço-Preto, José Amigo...
Amigo? Homem desses, alguém dizendo a um que ele é demônio de ruim, ele ira de não querer ser, capaz até de nessa raiva matar o outro. Afirmo ao senhor, do que vivi! o mais difícil não é um ser bom e proceder honesto; dificultoso, mesmo, é um saber definido o que quer, e ter o poder de ir até no rabo da palavra. Ezirino matou um companheiro, que Batatinha se chamava, o pobre dum cafuz magrelo, só que tinha o danado defeito de contrariar qualquer coisa que a gente falava. Ezirino caíu no mundo. Daí, começou voz que ele tinha fugido para se bandear com os zé-bebelos, pago por sua traição, e que Batatinha somente morreu porque disso sabia. Todo o mundo andava encrêspo, forjicavam muita cilada e enredos de desconfianças. Mudamos para outros lugares, mais a coberto, em distância! obra de sete léguas, para a parte do poente. Muito vi que não estávamos fazendo isso por escapulir; mas que o Hermógenes, Titão Passos e João Goanhá, antes acharam de combinar aquilo, em suas conversas ― era o arrumo para melhores combates com Zé Bebelo. Ah, e, aí, lá chegaram, com satisfação de todos, dez homens, a Sô Candelário pertencidos. Traziam cargueiros com mais sal, bom café e uma barrica de bacalhau. Delfim era um daqueles, tocava. E o Luzié, alagoano de Alagôas. Nesse dia, eu saí, com esquadra, fomos rondar os caminhos de porventura dos bebelos, andamos mais de três léguas e tanto, no meio da noite retornamos.
De manhã cedo, eu soube! tinham até dansado, aquela véspera. ― Diadorim, você dansa? ― logo, perguntei. ― Dansa?
Aquilo é pé de salão... ― quem respondeu foi o Garanço, o de olhos de porco. Ouvindo o que, me sobrou um enjôo. O Garanço, era um mocorongo mermado, com estúrdias feições, e pessoa muito agradável de seu natural. Ele tinha ideias, às vezes parecia criança pequena. Punha nome em suas armas: o facão era torturúm, o revólver rouxinol, a clavina era berra-bode. Com ele, a gente ria, sempremente. Mais o Garanço dava de procurar a companhia nossa, minha e de Diadorim; aquele tempo ele vinha costumeiro para perto. As vezes, como naquilo, ele me produzia jeriza, verdadeira. Diadorim não dizia nada, estava deitado de costas, num pelego, com a cabeça num feixe de capim cortado. Ali naquele lugar ele contumaz dormia ― Diadorim menos gostava de rede. O Garanço era sanfranciscano, dum lugar chamado Morpará. Hás-de, queria que a gente escutasse ele recontar compridas passagens de sua vida. Aquilo aborrecia. Eu queria estar-estâncias: dos violeiros, que tocavam sentimento geral. Depois, Diadorim se levantou, ia em alguma parte. Guardei os olhos, meio momento, na beleza dele, guapo tão aposto ― surgido sempre com o jaleco, que ele tirava nunca, e com as calças de vaqueiro, em couro de veado macho, curtido com aroeira-brava e campestre. De repente, uma coisa eu necessitei de fazer. Fiz: fui e me deitei no mesmo dito pelego, na cama que ele Diadorim marcava no capim, minha cara posta no próprio lugar. Nem me fiz caso do Garanço, só com o violeiro somei. A zangarra daquela viola. Por não querer meu pensamento somente em Diadorim, forcejei. Eu já não presenciava nada, nem escutava possuído ― fiquei sonhejando: o ir do ar, meus confins. Aí pensei no São Gregório? A bem, no São Gregório, não; mas peguei saudade dos passarinhos de lá, do pôço no córrego, do batido do monjolo dia e noite, da cozinha grande com fornalha acesa, dos cômodos sombrios da casa, dos currais adiante, da varanda de ver nuvens.
O senhor sabe?! não acerto no contar, porque estou remexendo o vivido longe alto, com pouco carôço, querendo esquentar, demear, de feito, meu coração, naquelas lembranças. Ou quero enfiar a ideia, achar o rumozinho forte das coisas, caminho do que houve e do que não houve. As vezes não é fácil. Fé que não é.
Guimarães Rosa, in Grande sertão: veredas

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