Permeio
com quantos, removido no estatuto deles, com uns poucos me
acompanheirei, daqueles jagunços, conforme que os anjos-da-guarda.
Só quase a boa gente. Sendo que são, por todos, estes: Capixúm
― caboclo sereno, viajado, filho dos gerais de São Felipe;
Fonfrêdo ― que cantava todas as rezas de padre, e comia
carne de qualidade nenhuma, e que nunca dizia de onde era e viera; o
que rimava verso com ele: Sesfrêdo, desse já lhe contei; o
Testa-em-Pé, baiano ladino, chupava muito; o Paspe,
vaqueiro jaibano, o homem mais habilidoso e serviçal que já topei
nesta minha vida; Dadá Santa-Cruz, dito o Caridoso, queria
sempre que se desse resto de comida à gente pobre com vergonha de
vir pedir; o Carro-de-Boi, gago, gago. O Catôcho,
mulato claro ― era curado de bala. Lindorífico, chapadeiro
minas-novense, com mania de aforrar dinheiro. O Diôlo, preto
de beiço maior. Juvenato, Adalgizo, o
Sangue-de-Outro. Ei, tantos; para quê que eu fui querer começar
a descrever? Dagobé, o Eleutério, Pescoço-Preto,
José Amigo...
Amigo?
Homem desses, alguém dizendo a um que ele é demônio de ruim, ele
ira de não querer ser, capaz até de nessa raiva matar o outro.
Afirmo ao senhor, do que vivi! o mais difícil não é um ser bom e
proceder honesto; dificultoso, mesmo, é um saber definido o que
quer, e ter o poder de ir até no rabo da palavra. Ezirino
matou um companheiro, que Batatinha se chamava, o pobre dum
cafuz magrelo, só que tinha o danado defeito de contrariar qualquer
coisa que a gente falava. Ezirino caíu no mundo. Daí, começou voz
que ele tinha fugido para se bandear com os zé-bebelos, pago por sua
traição, e que Batatinha somente morreu porque disso sabia. Todo o
mundo andava encrêspo, forjicavam muita cilada e enredos de
desconfianças. Mudamos para outros lugares, mais a coberto, em
distância! obra de sete léguas, para a parte do poente. Muito vi
que não estávamos fazendo isso por escapulir; mas que o Hermógenes,
Titão Passos e João Goanhá, antes acharam de combinar aquilo, em
suas conversas ― era o arrumo para melhores combates com Zé
Bebelo. Ah, e, aí, lá chegaram, com satisfação de todos, dez
homens, a Sô Candelário pertencidos. Traziam cargueiros com mais
sal, bom café e uma barrica de bacalhau. Delfim era um daqueles,
tocava. E o Luzié, alagoano de Alagôas. Nesse dia, eu saí, com
esquadra, fomos rondar os caminhos de porventura dos bebelos, andamos
mais de três léguas e tanto, no meio da noite retornamos.
De
manhã cedo, eu soube! tinham até dansado, aquela véspera. ―
Diadorim, você dansa? ― logo, perguntei. ― Dansa?
Aquilo
é pé de salão... ― quem respondeu foi o Garanço, o de olhos de
porco. Ouvindo o que, me sobrou um enjôo. O Garanço, era um
mocorongo mermado, com estúrdias feições, e pessoa muito agradável
de seu natural. Ele tinha ideias, às vezes parecia criança pequena.
Punha nome em suas armas: o facão era torturúm, o revólver
rouxinol, a clavina era berra-bode. Com ele, a gente
ria, sempremente. Mais o Garanço dava de procurar a companhia nossa,
minha e de Diadorim; aquele tempo ele vinha costumeiro para perto. As
vezes, como naquilo, ele me produzia jeriza, verdadeira. Diadorim não
dizia nada, estava deitado de costas, num pelego, com a cabeça num
feixe de capim cortado. Ali naquele lugar ele contumaz dormia ―
Diadorim menos gostava de rede. O Garanço era sanfranciscano, dum
lugar chamado Morpará. Hás-de, queria que a gente escutasse ele
recontar compridas passagens de sua vida. Aquilo aborrecia. Eu queria
estar-estâncias: dos violeiros, que tocavam sentimento geral.
Depois, Diadorim se levantou, ia em alguma parte. Guardei os olhos,
meio momento, na beleza dele, guapo tão aposto ― surgido sempre
com o jaleco, que ele tirava nunca, e com as calças de vaqueiro, em
couro de veado macho, curtido com aroeira-brava e campestre. De
repente, uma coisa eu necessitei de fazer. Fiz: fui e me deitei no
mesmo dito pelego, na cama que ele Diadorim marcava no capim, minha
cara posta no próprio lugar. Nem me fiz caso do Garanço, só com o
violeiro somei. A zangarra daquela viola. Por não querer meu
pensamento somente em Diadorim, forcejei. Eu já não presenciava
nada, nem escutava possuído ― fiquei sonhejando: o ir do ar, meus
confins. Aí pensei no São Gregório? A bem, no São Gregório, não;
mas peguei saudade dos passarinhos de lá, do pôço no córrego, do
batido do monjolo dia e noite, da cozinha grande com fornalha acesa,
dos cômodos sombrios da casa, dos currais adiante, da varanda de ver
nuvens.
O
senhor sabe?! não acerto no contar, porque estou remexendo o vivido
longe alto, com pouco carôço, querendo esquentar, demear, de feito,
meu coração, naquelas lembranças. Ou quero enfiar a ideia, achar o
rumozinho forte das coisas, caminho do que houve e do que não houve.
As vezes não é fácil. Fé que não é.
Guimarães
Rosa, in Grande sertão: veredas
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