Todas
as histórias são iguais, o que varia é a maneira de ouvi-las. No
grupo comentava-se a semelhança entre os mitos e os contos de fada.
Na história de Branca de Neve, por exemplo, a rainha má consulta o
seu espelho e pergunta se existe no reino uma beleza maior do que a
sua. Os espelhos de castelo, nos contos de fada, são um pouco como
certa imprensa brasileira, muitas vezes dividida entre as
necessidades de bajular o poder e de refletir a realidade. O espelho
tentou mudar de assunto, elogiou o penteado da rainha, o seu vestido,
a sua política econômica, mas finalmente respondeu: “Existe.”
Uma menina de pele tão branca, de cabelo tão loiro e de rosto tão
lindo que era espantoso que ainda não tivesse sido procurada pela
agência Ford, apesar dos seus 12 anos incompletos. Seu nome: Branca
de Neve.
A
rainha má mandou chamar um lenhador e instruiu-o a levar Branca de
Neve para a floresta, matá-la, desfazer-se do corpo e voltar para
ganhar sua recompensa. Mas o lenhador poupou Branca de Neve. Toda a
história depende da compaixão de um lenhador sobre o qual não se
sabe nada. Seu nome e sua biografia não constam em nenhuma versão
do conto. A rainha má é a rainha má, claramente um arquétipo
freudiano, a mãe de Electra mobilizada para eliminar a filha rival
que seduzirá o pai, e os arquétipos não precisam de nome. O
Príncipe Encantado que aparecerá no fim da história também não
precisa. É um símbolo reincidente, talvez nem a Branca de Neve se
dê ao trabalho de descobrir seu nome e, na velhice, apenas o chame
de “Pri”, ou, ironicamente, “Seu Encantado”. Dos sete anões
se sabe tudo: nome, personalidade, hábitos, fobias, CIC, tudo. Mas o
personagem principal da história, sem o qual a história não
existiria e os outros personagens não se tornariam famosos, não é
símbolo de nada. Salvo, talvez, da importância do fortuito em
qualquer história, mesmo as mais preordenadas. Ele só entra na
trama para fazer uma escolha, mas toda a narrativa fica em suspenso
até que ele faça a escolha certa, pois se fizer a errada não tem
história. O lenhador compadecido representa os dois segundos de
livre-arbítrio que podem desregular o mundo dos deuses e heróis.
Por isso é desprezado como qualquer intruso e nem aparece nos
créditos.
Laio
ouve do seu oráculo que seu filho recém-nascido um dia o matará, e
manda chamar um pastor. É o lenhador, numa caracterização
anterior. O pastor é incumbido de levar o pequeno Édipo para as
montanhas e eliminá-lo. Mais uma vez um universo inteiro fica parado
enquanto um coadjuvante decide o que fazer. Se o pastor matar Édipo,
não existirão o mito, o complexo e provavelmente a civilização
como nós a conhecemo s. Mas o pastor poupa Édipo, que matará Laio
por acaso e casará com Jocasta, sua viúva, sem saber que é sua
mãe, tornando-se pai do filho dela e seu próprio enteado e dando
início a cinco mil anos de culpa. O pastor podia se chamar Ademir.
Nunca ficamos sabendo.
Todos
no grupo concordaram que as histórias reincidentes mostram como são
os figurantes anônimos que fazem a história, ou como, no fim, é a
boa consciência que move o mundo. Mas uma discordou, e disse que
tudo aquilo só provava o que ela sempre dizia: que o maior problema
da humanidade, em todos os tempos, era a dificuldade em conseguir
empregados de confiança, que fizessem o que lhes era pedido.
Luís
Fernando Veríssimo, in Banquete com os deuses
Nenhum comentário:
Postar um comentário