Há
duas formas de marcar o tempo. Uma delas foi inventada por homens que
amam a precisão dos números, matemáticos, astrônomos, cientistas,
técnicos. Para marcar o tempo de forma precisa, eles fabricaram
ampulhetas, relógios, cronômetros, calendários. Nesses artefatos
técnicos, todos os pedaços do tempo – segundos, minutos, dias,
anos – são feitos de uma mesma substância: números, entidades
matemáticas. Não há inícios nem fins, apenas a indiferente
sucessão de momentos, que nada dizem sobre alegrias e sofrimentos.
Apenas um bolso vazio. Nele, a alma não encontra morada.
Nas
Olimpíadas, a performance dos corredores e nadadores é
medida até os centésimos. Fico a me perguntar: “Como é que
conseguem? Que diferença faz?”.
A
outra foi inventada por homens que sabem que a vida não pode ser
medida com calendários e relógios. A vida só pode ser marcada com
a vida. Os amantes do Cântico dos Cânticos marcavam o tempo do amor
pelos frutos maduros que pendiam das árvores. Quando as folhas dos
plátanos ficam amarelas sabemos que o outono chegou. Os ipês-rosas
e amarelos anunciam o inverno.
Qual
a magia que informa os ipês, todos eles, em lugares muito
diferentes, que é hora de perder as folhas e florescer? E sem
misturar as cores. Primeiro os rosas, depois os amarelos e,
finalmente, os brancos.
Sugeri
que algum compositor compusesse uma sinfonia ou uma brincadeira
musical em três movimentos. Primeiro movimento, “Ipê-rosa”,
andante tranquilo, em que os violoncelos cantam a paz e a
segurança. Segundo movimento, “Ipê-amarelo”, rondo vivace,
em que os metais, cores parecidas com a dos ipês, fazem soar a
exuberância da vida. Terceiro movimento, “Ipê-branco”,
moderato, em que o veludo dos oboés cantam a mansidão. Seria
bom se nós, como os ipês, nos abríssemos para o amor no inverno.
A
precisão dos números marca o tempo das máquinas e do dinheiro. O
tempo do amor se marca com o corpo.
Um
calendário é coisa precisa: anos, meses, dias, horas, que são
marcados com números. Esses números medem o tempo. Mas os pedaços
de tempo são bolsos vazios: nada há dentro deles. O bolso vazio do
tempo se torna parte do nosso corpo quando o enchemos com vida. Aí o
tempo não mais pode ser representado por números. O tempo aparece
como um fruto que vai sendo comido: é belo, é colorido, é
perfumado. E, à medida que vai sendo comido, vai acabando. Vem a
tristeza. O tempo da vida se marca por alegrias e tristezas. Há
inícios e há fins.
Tempus
fugit; o tempo foge. Portanto, carpe diem: colha o dia
como um fruto que amanhã estará podre.
Viver
ao ritmo de alegrias e tristezas é ser sábio. “Sapio”, no
latim, quer dizer, “eu saboreio”. O sábio é um degustador da
vida. A vida não é para ser medida. Ela é para ser saboreada.
Um
texto bíblico diz: “Ensina-nos a contar os nossos dias de tal
maneira que alcancemos um coração sábio”. Acho que Jesus
sorriria se eu acrescentasse ao “Pai-Nosso” outra súplica: “A
fruta nossa de cada dia dá-nos hoje...”. Caqui, pitanga, morango à
beira do abismo, melancia...
Heráclito
foi um filósofo grego fascinado pelo tempo. Contemplava o rio e via
que tudo é rio. Percebeu que não é possível entrar duas vezes no
mesmo rio; na segunda vez, as águas serão outras, o primeiro rio já
não existirá. Tudo é água que flui: as montanhas, as casas, as
pedras, as árvores, os animais, os filhos, o corpo... Assim é tudo,
assim é a vida: tempo que flui sem parar. Daquilo que ele
supostamente escreveu, restam apenas fragmentos enigmáticos. Dentre
eles, um me encanta: “Tempo é criança brincando, jogando; da
criança o reinado”.
Para
nós, o tempo é um velho, cada vez mais velho, sobre quem se
acumulam os anos que passam e de quem a vida foge. Heráclito, ao
contrário, diz que o tempo é criança, início permanente,
movimento circular, o fim que volta sempre ao início, fonte de
juventude eterna, possibilidade de novo começos.
Tempo
é criança? O que o filósofo queria dizer exatamente eu não sei.
Mas sei que as crianças odeiam Chronos, o deus dos cronômetros, dos
segundos, dos centésimos de segundos. O relógio é o tempo do
dever: corpo engaiolado.
Rubem
Alves, in Do universo à jabuticaba
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