sábado, 22 de fevereiro de 2020

O corpo repartido

Meus discursos tornaram-se violentos e a sala do senado estava sempre cheia para me escutar. Depois foi pedida e obtida a minha cassação e ordenou-se à polícia minha detenção.
Mas nós, os poetas, temos, entre nossas substâncias originais, a de sermos feitos em grande parte de fogo e fumaça.
A fumaça era para escrever. A relação histórica do que estava acontecendo comigo estava dramaticamente próxima dos antigos temas americanos. Naquele ano de perigo e de clandestinidade terminei meu livro mais importante, o Canto General.
Mudava de casa quase diariamente. Em todas as partes abria-se uma porta para me abrigar. Era sempre gente desconhecida que de alguma maneira tinha expressado seu desejo de me acolher por vários dias. Queriam-me como asilado ainda que fosse por algumas horas ou algumas semanas. Passei por campos, portos, cidades, acampamentos, como também por casas de camponeses, de engenheiros, de advogados, de marinheiros, de médicos, de mineiros.
Há um velho tema na poesia folclórica que se repete em todos os nossos países. Trata-se de “o corpo repartido”. O cantor popular supõe que tem seus pés numa parte, seu coração em outra e descreve todo o seu organismo que deixou espalhado por campos e cidades. Assim eu me senti naqueles dias.
Entre os lugares comovedores que me albergaram lembro de uma casa de duas peças, perdida entre os morros pobres de Valparaíso.
Eu estava circunscrito a uma parte da habitação e a um cantinho de janela de onde observava a vida do porto. Daquela ínfima atalaia, meu olhar abarcava um fragmento da rua. À noite via circular gente apressada. Era um arrabalde pobre e aquela pequena rua, a cem metros debaixo da minha janela, açambarcava toda a iluminação do bairro. Estava cheia de lojinhas e boliches.
Preso em meu canto, minha curiosidade era infinita. Minhas cismas e deduções, solitárias. Às vezes não conseguia resolver os problemas. Por exemplo: por que a gente que passava, tanto os indiferentes como os apressados, detinham-se sempre num mesmo lugar? Que mercadorias mágicas exibiam nessa vitrina? Famílias inteiras paravam ali longamente com os filhos nos ombros. Eu não conseguia ver as caras de arrebatamento que sem dúvida tinham ao olhar a vitrina mágica, mas fazia ideia.
Seis meses depois soube que aquela era a vitrina de uma simples loja de calçados. O sapato é o que mais interessa ao homem, deduzi. Jurei a mim mesmo estudar esse assunto, investigá-lo e expressá-lo. Nunca tive tempo para cumprir esse propósito ou promessa formulada em tão estranhas circunstâncias. No entanto, há não poucos sapatos em minha poesia. Eles circulam batendo com os saltos em muitas de minhas estrofes, sem que eu me tenha proposto a ser um poeta sapatoril.
Subitamente chegaram à casa visitas que prolongavam suas conversas sem se dar conta que a curta distância, separado por um tabique feito com papelões e jornais velhos, estava um poeta perseguido por não sei quantos profissionais da caçada humana.
No sábado à tarde e também no domingo pela manhã chegava o noivo de uma das moças da casa que não devia saber que eu estava ali. Era um jovem trabalhador, dono do coração da garota mas, ai!, ainda não confiavam nele. Da claraboia de minha janela eu o via descer da bicicleta, na qual entregava ovos por todo o extenso bairro popular. Pouco depois ouvia-o entrar cantarolando na casa. Era um inimigo de minha tranquilidade. Digo inimigo porque empenhava-se em ficar namorando a moça a poucos centímetros de minha cabeça. Ela o convidava a praticar o amor platônico em algum parque ou no cinema mas ele resistia heroicamente. E eu maldizia entre dentes a obstinação caseira daquele inocente distribuidor de ovos.
O resto das pessoas da casa estava a par do segredo: a mãe viúva, as duas moças encantadoras e os dois filhos marinheiros. Estes descarregavam bananas na baía e às vezes ficavam furiosos porque não arranjavam contrato em nenhum barco. Por eles soube que uma velha embarcação estava sendo desmontada. Do meu canto dirigi as operações: desprenderam a bela estátua de proa do navio e deixaram-na escondida numa adega do porto. Só vim conhecê-la vários anos depois da minha fuga e do meu desterro. A formosa mulher de madeira, com rosto grego como todas as carrancas dos veleiros antigos, olha-me agora com sua beleza melancólica enquanto escrevo estas memórias junto ao mar.
O plano era que eu embarcasse clandestinamente na cabina de um dos rapazes e desembarcasse ao chegar a Guaiaquil, surgindo do meio das bananas. O marinheiro explicava-me que eu deveria aparecer inesperadamente na coberta, ao ancorar o barco no porto equatoriano, vestido de passageiro elegante, fumando um charuto que nunca pude fumar. Foi decidido na família, já que era iminente a partida, que me confeccionassem o traje apropriado - elegante e tropical - para o qual trataram de me tomar as medidas.
Em dois tempos ficou pronto meu traje. Nunca me diverti tanto como ao recebê-lo. A ideia que as mulheres da casa tinham da moda estava influenciada por um filme famoso daquele tempo: E o vento levou... Os rapazes, por seu lado, consideravam como arquétipo da elegância o que tinham recolhido nos dancings do Harlem e nos bares e cabarés do Caribe. O jaquetão, cruzado e cintado, chegava-me aos joelhos. As calças me apertavam os tornozelos.
Guardei a pitoresca vestimenta, elaborada por pessoas tão bondosas, e nunca tive oportunidade de usá-la. Nunca saí de meu esconderijo em um barco nem desem-barquei jamais entre as bananas em Guaiaquil vestido como um falso Clark Gable. Escolhi, pelo contrário, o caminho do frio. Parti para o extremo sul do Chile, que é o extremo sul da América, e me dispus a atravessar a cordilheira.
Pablo Neruda, in Confesso que vivi

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