quinta-feira, 6 de fevereiro de 2020

Leite derramado - 7

bom dia, flor do dia, mas deve haver modos menos agourentos de se despertar que com uma filha choramingando à cabeceira. E pelo visto, mais uma vez você veio sem os meus cigarros, que dirá os charutos. Que é proibido fumar aqui dentro eu sei, mas dá-se um jeito, também não estou lhe pedindo para entrar no hospital com cocaína. Vou lhe contar como um belo dia, em Paris, seu avô resolveu me levar a uma estação de inverno. Papai era um homem de múltiplos interesses, mas até então eu desconhecia essa sua faceta esportiva. Aos dezessete anos, segundo ele, já estava mais que na hora de eu conhecer a neve, por isso enfrentamos longa viagem de trem até Crans-Montana, nos Alpes suíços. À noite demos entrada no hotel, munidos de botas e luvas e gorros de lã, pares de esquis e de bastões, todo o aparato. E eu já ia dormir quando papai me chamou ao seu quarto, sentou-se numa chaise longue e abriu um estojo de ébano. Mas o que é isso, meu pai? É a neve, ora bolas, disse ele muito sério, papai fazia questão de nunca sair do sério. Com uma miniespátula separou o pó branquíssimo em quatro linhas, depois me passou um canudo de prata. Mas não se tratava dessa porcaria que idiota cheira por aí, era cocaína da pura, que só tomava quem podia. Não travava a boca, não tirava a fome, nem brochava, tanto é verdade que em seguida ele mandou subir as putas. Às vezes sinto pena da minha mãe, porque papai não lhe deu sossego nem depois de morto. Sua avó teve de receber em casa o chefe de polícia, aturar perguntas insolentes, pois corria que meu pai tinha sido morto a mando de um corno. Isso porque foi metralhado ao entrar na sua garçonnière, mas mamãe só lia O Paiz, cujas reportagens atribuíam o crime à oposição. Também é verdade que em mamãe a desgraça não caía mal, trajes pretos eram adequados à sua natureza. Assim como em você toda cor é gritante, o sol não pega, hoje posso lhe dizer que me dava pena você mocinha, errando a mão na maquilagem. Você nunca me convenceu em seus dias de glória, aos beijos com seu namorado num Bentley conversível. Ficou irreconhecível vestida de noiva, ou de pilequinho na recepção do Jockey Club, parecia fora de si a me acenar do convés do Conte Grande, de óculos escuros e luvas vermelhas. Da lua-de-mel voltou esfuziante, falava com deleite até de uma audiência com Pio XII no Vaticano. E eu me esforçava em partilhar os seus deslumbramentos, a ponto de lhe dar os parabéns quando você me mostrou seu passaporte, onde ao sobrenome Assumpção se acrescentara um Palumba. Confesso que eu também me divertia com Amerigo Palumba, principalmente ao ver o escudinho na sua lapela, com a coroa do partido monárquico italiano. O lenço de seda, a abotoadura de brilhantes, a pérola na gravata, tinha lá sua graça o estilo, se você considerar que o velho Palumba enriqueceu em São Paulo estripando porcos. Não sei se o filho tinha vergonha das salsichas, mas deve ter erguido as mãos para o céu durante a guerra, quando as bandas antifascistas incendiaram seus frigoríficos. Depois da guerra veio para a capital, passou a investir na bolsa de valores, tratava dinheiro por apelidos, e quando a levou recém-casada para morar num palacete suspenso no Flamengo, achou bonito me contar quanto pagava de aluguel. E você continuava estranhamente feliz, ocupada com a decoração do palacete à la Segundo Império. Ia às corridas no Hipódromo, à piscina do Copacabana Palace, chegou perto de me lembrar sua mãe quando dançava o tango. Até que Amerigo Palumba me deu o bote e sumiu. No mês seguinte, despejada do palacete por insolvência, você retornou ao seu estado natural, e um pouco curvada olhava para mim como quem diz, viu só?
Chegavam as faturas, as prestações do conversível, da companhia de navegação, do antiquário, de todo lado explodiam apólices, hipotecas, papagaios, e você me dizia, eu não disse? De Amerigo Palumba recebi notícias duvidosas. Não sei se aplicou minhas finanças em títulos nobiliárquicos, dizem até que fez camaradagem com o rei destronado da Itália. Foi visto perdendo dinheiro a rodo no cassino do Estoril, para enlevo de uns duques velhos, porque ganhar na roleta era coisa de nouveau riche. É como se dizia antigamente, pai rico, filho nobre, neto pobre. O neto pobre calhou de estar na sua barriga, Eulálio d'Assumpção Palumba, o garotão por nós criado, que cresceu rebelde com toda a razão. Já maduro entrou nos eixos, mas você deve lembrar quando ele meteu na cabeça de ser comunista. Agora imagine a sua avó o que diria, neta casada com filho de imigrante e bisneto comunista da linha chinesa. Esse seu filho engravidou outra comunista, que teve um filho na cadeia e na cadeia morreu. Você diz que ele próprio morreu nas mãos da polícia, e com efeito tenho vaga lembrança de tal assunto. Mas lembrança de velho não é confiável, e agora estou seguro de ter visto o garotão Eulálio ainda outro dia, forte toda a vida. Ele até me deu uma caixa de charutos, mas que besteira a minha, o que morreu era outro Eulálio, um que parecia o Amerigo Palumba mais magro. O Eulálio magro é que virou comunista, porque já nasceu na cadeia dizem que teve um desmame precoce. Daí fumava maconha, batia nas professoras, foi expulso de todas as escolas. Mas mesmo semianalfabeto e piromaníaco, arranjou trabalho e prosperou, outro dia me deu uma caixa de charutos. Visitou-me em casa com uma namoradinha de barriga de fora e brinco no umbigo. Essa me faria gosto como nora, mas quem pariu na cadeia foi outra. Não esqueço o dia em que me telefonaram para buscar o bebé no hospital do Exército, o coronel foi atencioso, disse me conhecer de outros Carnavais. Até me emocionei ao ver o pimpolho, praticamente órfão de pai e mãe, porque Amerigo Palumba estava longe e você, presa e incomunicável. Mas espere um pouco, isso não é possível porque você saiu do hospital ao meu lado, com a criança no colo. Só sei que Eulálio d'Assumpção Palumba Júnior foi batizado e criado por nós, hoje é esse garotão que a leva para andar de carro e me dá charutos cubanos. Veio aqui em casa outro dia com uma namoradinha de alfinete no umbigo, que não parece nada comunista. Nem o garotão tem jeito de quem distribui panfletos contra a ditadura. Você deve estar fazendo confusão com o outro, aquele Eulálio mais moreno, namorador, que teve um caso com uma japonesa e engravidou a prima. Mas aquele, se não me engano, era filho desse Eulálio garotão com a moça do umbigo, minha cabeça às vezes fica meio embolada. É uma tremenda barafunda, filha, você nem vai me dar um beijo? É desagradável ser abandonado assim, falando com o teto.
Chico Buarque, in Leite derramado

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