domingo, 2 de fevereiro de 2020

Lavoura Arcaica - 12

(...e é enxergando os utensílios, e mais o vestuário da família, que escuto vozes difusas perdidas naquele fosso, sem me surpreender contudo com a água transparente que ainda brota lá do fundo; e recuo em nossas fadigas, e recuo em tanta luta exausta, e vou puxando desse feixe de rotinas, um a um, os ossos sublimes do nosso código de conduta: o excesso proibido, o zelo uma exigência, e, condenado como vício, a prédica constante contra o desperdício, apontado sempre como ofensa grave ao trabalho; e reencontro a mensagem morna de cenhos e sobrolhos, e as nossas vergonhas mais escondidas nos traindo no rubor das faces, e a angústia ácida de um pito vindo a propósito, e uma disciplina às vezes descarnada, e também uma escola de meninos-artesãos, defendendo de adquirir fora o que pudesse ser feito por nossas próprias mãos, e uma lei ainda mais rígida, dispondo que era lá mesmo na fazenda que devia ser amassado o nosso pão: nunca tivemos outro em nossa mesa que não fosse o pão de casa, e era na hora de reparti-lo que concluíamos, três vezes ao dia, o nosso ritual de austeridade, sendo que era também na mesa, mais que em qualquer outro lugar, onde fazíamos de olhos baixos o nosso aprendizado da justiça.)
Raduan Nassar, in Lavoura Arcaica

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