terça-feira, 4 de fevereiro de 2020

Arábia

A North Richmond Street, por ser uma rua sem saída, era silenciosa, exceto na hora em que a Christian Brothers’ School soltava os garotos. Uma casa desabitada de dois andares ficava no fundo da rua, afastada dos vizinhos em um terreno quadrado. As outras casas da rua, cientes das vidas decentes que abrigavam, olhavam umas para as outras com rostos marrons imperturbáveis. O antigo morador da nossa casa, um padre, havia morrido na saleta dos fundos. Um cheiro de mofo causado pelo longo tempo de enclausuramento pairava sobre todos os cômodos, e o quarto de despejo atrás da cozinha estava cheio de velhos jornais inúteis. No meio deles encontrei alguns livros encadernados em brochura, com páginas curvas e emboloradas: The Abbot, de Walter Scott, The Devout Communicant e The Memoirs of Vidocq. Gostei mais deste último porque as páginas estavam amareladas. O jardim negligenciado atrás da casa tinha uma macieira e arbustos tortos em meio aos quais encontrei a enferrujada bomba de bicicleta do falecido morador. Ele tinha sido um padre muito caridoso; no testamento, deixou todo o dinheiro para instituições e todos os móveis da casa para a irmã.
Quando os dias curtos do inverno chegavam, a noite caía antes do jantar. Quando nos encontrávamos na rua as casas pareciam sombrias. O céu acima das nossas cabeças tinha um tom de violeta em constante mudança, e as lâmpadas da iluminação pública erguiam as débeis lanternas para o alto. O ar frio era cortante e brincávamos até ficar com o corpo avermelhado. Nossos gritos ecoavam pela rua silenciosa. A rota da brincadeira levava-nos pelos becos escuros e lodacentos atrás das casas, onde passávamos pelo corredor da morte formado pelas tribos rústicas dos barracos antes de chegar às portas dos fundos de jardins escuros e gotejantes que soltavam odores das borralheiras e às estrebarias onde um cavalariço alisava e escovava um cavalo ou tirava música das fivelas nos arreios. Quando voltávamos mais uma vez para a rua a luz das cozinhas havia preenchido esses espaços. Se o meu tio aparecesse na esquina, escondíamo-nos na sombra até vê-lo devidamente em casa. Ou se a irmã de Mangan saísse até a soleira da porta e chamasse o irmão para o jantar nós a observávamos da nossa sombra enquanto procurava para cima e para baixo da rua. Esperávamos para ver se ela ia continuar na rua ou entrar e, se continuasse na rua, abandonávamos a nossa sombra e caminhávamos até os degraus da casa de Mangan com um ar resignado. Ela ficava à nossa espera, com a silhueta desenhada pela luz da porta entreaberta. O irmão sempre a provocava antes de obedecer e eu ficava na balaustrada olhando para ela. O vestido ondulava quando ela mexia o corpo e as suaves cordas do cabelo balançavam de um lado para o outro.
Toda manhã eu ficava na sala observando a porta dela. A cortina ficava a um dedo do parapeito para que eu não fosse visto. Quando ela saía até a soleira da porta o meu coração dava um pulo. Eu ia depressa até o corredor, pegava os meus livros e a seguia. Mantinha aquela figura morena sempre no meu campo de visão e, quando chegávamos no ponto em que nossos caminhos se separavam, eu apertava o passo e a ultrapassava. Isso se repetia manhã após manhã. Eu nunca tinha conversado com ela, a não ser por umas poucas palavras casuais, porém mesmo assim seu nome era como um chamado para todo o meu sangue tolo.
A imagem dela me acompanhava até nos lugares mais hostis ao romance. No entardecer de sábado quando a minha tia saía para fazer as compras eu precisava carregar alguns pacotes. Caminhávamos pelas ruas iluminadas, sendo empurrados por bêbados e pechinchadoras em meio aos xingamentos dos trabalhadores, às litanias estridentes dos vendedores que ficavam de guarda junto dos barris de bochechas de porco e às melodias anasaladas dos cantores de rua, que entoavam um come-all-you sobre O’Donovan Rossa ou uma balada sobre os problemas em nossa terra natal. Para mim todos esses barulhos formavam uma única sensação de vida: eu imaginava estar carregando o meu cálice em segurança no meio de uma horda de inimigos. Em certos momentos o nome dela surgia em meus lábios em estranhas orações e elogios que nem eu compreendia. Muitas vezes meus olhos ficavam rasos de lágrimas (eu não sabia por quê) e de vez em quando uma torrente do meu coração parecia derramar-se em meu peito. Eu pensava pouco no futuro. Não sabia se devia ou não falar com ela nem, caso falasse, como poderia explicar minha confusa adoração. Mas o meu corpo era como uma harpa e as palavras e os gestos dela eram como dedos correndo sobre as cordas.
Certa noite fui até a saleta dos fundos onde o padre havia morrido. Era uma noite escura e chuvosa e não se ouvia nenhum barulho na casa. Por um vidro quebrado eu ouvia a chuva cair sobre a terra, as pequenas agulhas incessantes de água brincando nos canteiros encharcados. Uma janela ou uma lamparina distante cintilava logo abaixo de mim. Agradeci por ver tão pouco. Todos os meus sentidos pareciam querer esconder-se atrás de um véu e, sentindo que eu estava prestes a escapar, apertei a palma das mãos até que tremessem, murmurando: Meu amor! Meu amor! várias vezes.
Por fim ela falou comigo. Quando dirigiu as primeiras palavras a mim fiquei tão confuso que eu não sabia o que responder. Ela me perguntou se eu estava indo para a Arábia. Não lembro se respondi sim ou não. Seria um bazar esplêndido, disse-me; ela adoraria ir.
E por que você não vai?, perguntei.
Enquanto falava ela girava um bracelete de prata ao redor do pulso. Ela não ia, disse, porque naquela semana haveria um retiro no convento. O irmão e outros dois garotos estavam brigando por causa dos bonés e eu estava sozinho na balaustrada. Ela segurava uma das barras, inclinando a cabeça na minha direção. A luz em frente à nossa porta batia na curva branca do pescoço, iluminava os cabelos que se aninhavam por lá e, ao cair, iluminava a mão na balaustrada. A luz caía na lateral do vestido e pegava a borda branca de uma anágua, mal e mal visível enquanto continuava à vontade.
Sorte sua, disse ela.
Se eu for, vou trazer alguma coisa pra você.
Que loucuras destruíram meus pensamentos na vigília e no sono depois daquele entardecer! Eu queria aniquilar os aborrecidos dias de espera. Perdi a paciência com as tarefas escolares. À noite no meu quarto e durante o dia na sala de aula a imagem dela surgia entre mim e a página que eu me esforçava por ler. As sílabas da palavra Arábia chamavam-me através do silêncio em que minha alma banhava-se e lançavam sobre mim um encanto oriental. Pedi para ir ao bazar na noite de sábado. Minha tia ficou surpresa e disse que esperava que não fosse um evento maçônico. Eu respondia poucas perguntas durante a aula. Vi a expressão do meu professor passar da afabilidade ao rigor; não queria que eu começasse a relaxar nos estudos. Eu não conseguia organizar meus pensamentos divagantes. Perdia a paciência com as coisas sérias da vida que, por ficar entre mim e o meu desejo, pareciam uma brincadeira infantil, uma monótona e aborrecida brincadeira infantil.
Na manhã de sábado lembrei o meu tio de que eu queria ir ao bazar no entardecer. Ele estava mexendo na chapeleira do corredor, procurando a escova de chapéu, e me respondeu com laconismo:
Sim, menino, eu sei.
Enquanto ele estava no corredor eu não podia ir para a sala da frente e ficar na janela. Saí de mau humor e caminhei devagar em direção à escola. Fazia um frio implacável e o meu coração logo me deixou em dúvida.
Quando cheguei em casa para o jantar o meu tio ainda não havia passado em casa. Mas ainda era cedo. Fiquei olhando para o relógio durante algum tempo e, quando o tique-taque começou a me irritar, saí da sala. Subi a escada e ganhei a parte superior da casa. Os cômodos altos frios vazios e escuros me libertaram e fui de uma peça à outra cantando. Da janela da frente eu vi os meus amigos brincando na rua lá embaixo. Os gritos chegavam fracos e indistintos até mim, e com a testa encostada contra o vidro frio olhei para a casa escura onde ela morava. Talvez eu tenha passado uma hora lá, sem ver nada além da figura vestida de marrom projetada pela minha imaginação, com a luz da lamparina projetada na curva do pescoço, na mão pousada sobre os balaústres e na barra por baixo do vestido.
Quando voltei a descer encontrei a sra. Mercer sentada ao pé do fogo. Ela era uma senhora falastrona, viúva de um penhorista, que colecionava selos por algum motivo religioso. Precisei aturar os mexericos durante o jantar. A refeição prolongou-se por mais de uma hora e mesmo assim meu tio não chegou. A sra. Mercer pôs-se de pé para ir embora: pediu desculpas por não poder esperar mais, mas já passava das oito horas e ela não gostava de ficar fora até tarde porque o ar noturno lhe fazia mal. Depois que ela se foi eu comecei a andar de um lado para o outro com os punhos crispados. Minha tia disse:
Acho que você vai ter que adiar o bazar hoje à noite.
Às nove horas ouvi a chave do meu tio na porta do corredor. Ouvi-o falando sozinho e ouvi o balanço da chapeleira ao receber o peso do sobretudo. Eu sabia interpretar esses sinais. Quando ele havia percorrido metade do caminho até o prato eu pedi o dinheiro para ir ao bazar. Ele tinha esquecido.
As pessoas estão todas na cama a essa hora, disse.
Eu não sorri. Minha tia disse em tom enérgico:
Você não pode dar o dinheiro para ele e deixar que ele vá? Você já o deixou esperando o suficiente.
Meu tio pediu desculpas pelo esquecimento. Disse que acreditava no velho adágio: Nem só de trabalho vive o homem. Perguntou aonde eu ia e, quando eu respondi pela segunda vez, perguntou se eu conhecia A despedida do árabe ao corcel. Quando saí da cozinha ele estava prestes a recitar as linhas de abertura do poema para a minha tia.
Apertei o florim com força na minha mão enquanto descia a Buckingham Street rumo à estação. A visão das ruas repletas de compradores e iluminadas a gás fez com que eu relembrasse o propósito da jornada. Acomodei-me em um assento de terceira classe no vagão de um trem deserto. Depois de um atraso insuportável o trem afastou-se lentamente da estação. Avançou em meio a casas em ruínas e atravessou o rio cintilante. Na Westland Row Station uma multidão de pessoas se amontoou ao redor das portas; mas os cabineiros afastaram-nas, dizendo que era um trem especial para o bazar. Continuei sozinho no vagão deserto. Em poucos minutos o trem parou ao lado de uma plataforma de madeira improvisada. Passei para a estrada e vi no mostrador iluminado de um relógio que faltavam dez minutos para as dez. À minha frente, uma enorme construção ostentava o nome mágico.
Não consegui encontrar nenhuma entrada de seis pence e, com medo de que o bazar estivesse fechado, passei depressa por uma roleta depois de entregar um xelim a um homem de aspecto cansado. Me vi em um grande saguão circundado na metade da altura por uma galeria. Quase todas as bancas estavam fechadas e a maior parte do saguão estava às escuras. Reconheci um silêncio como o que envolve as igrejas depois da missa. Caminhei timidamente em direção ao centro do bazar. Algumas pessoas estavam reunidas ao redor das bancas que seguiam abertas. Em frente a uma cortina que trazia as palavras Café Chantant escritas com lâmpadas coloridas, dois homens contavam dinheiro em uma bandeja. Fiquei escutando o tilintar das moedas.
Depois de lembrar com dificuldade por que eu tinha ido ao bazar, fui até uma das bancas e examinei vasos de porcelana e jogos de chá floridos. Na porta, uma moça estava conversando e rindo com dois jovens cavalheiros. Percebi o sotaque inglês e escutei vagamente a conversa.
Ah, eu nunca disse uma coisa dessas!
Ah, claro que disse!
Ah, não disse não!
Ela não disse?
Disse. Eu ouvi.
Ah, que... mentira!
Ao me ver, a moça se aproximou e perguntou se eu gostaria de comprar alguma coisa. O tom de voz não era muito encorajador; ela parecia ter falado comigo movida por um sentimento de dever. Olhei com humildade para os grandes jarros que se erguiam como guardas orientais em ambos os lados da sombria entrada da banca e murmurei:
Não, obrigado.
A moça mudou a posição de um dos vasos e voltou para os dois jovens. Os três retomaram a mesma conversa. Por uma ou duas vezes a moça olhou por cima do ombro na minha direção.
Me demorei um pouco em frente à banca, mesmo sabendo que a minha permanência era inútil, para fazer com que o meu interesse nas mercadorias dela parecesse mais real. Depois me virei devagar e atravessei o bazar pelo meio. Deixei os dois pence caírem contra os seis pence no meu bolso. Escutei uma voz gritar do alto da galeria que as luzes seriam apagadas. A parte superior do saguão ficou totalmente às escuras.
Ao olhar para a escuridão me vi como uma criatura movida e vilipendiada pela vaidade; e meus olhos arderam de raiva e de angústia.
James Joyce, in Dublinenses

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