sexta-feira, 21 de fevereiro de 2020

A gula

W. H. Auden escreveu (mais ou menos): “O pecado da Gula está classificado entre os Sete Mortais, mas numa história policial pode-se ter certeza de que o gourmet não é o culpado.” Por quê? O poeta não explica. Os poetas nunca explicam, a não-explicação é o poema. Talvez quisesse dizer que no gosto por comer bem pressupõe-se uma certa delicadeza de espírito, ou que para o gourmet nenhum crime compensa uma refeição ou uma digestão interrompidas.
Os vilões vorazes da história e da ficção — Henrique VIII, que destrinchava frangos fritos com o mesmo entusiasmo com que mandava decapitar suas mulheres, a sucessão de bichos-papões que aterrorizam a humanidade — não são gourmets. Você não tinha dúvidas de que o monstro embaixo da sua cama queria comer o seu pé, mas você não o imaginava saboreando o seu pé, fazendo “mmm” a cada cartilagem. Ele queria o seu pé só por maldade.
Mas alguns assassinos da literatura policial foram notórios gastrônomos. Na verdade, com exceção do Nero Wolf de Rex Stout, até aparecer o James Bond, uma das distinções entre mocinhos e bandidos era que os bandidos comiam melhor, e havia até uma sutil relação entre sofisticação à mesa e requinte no crime: você podia confiar num gourmet para ser um calhorda completo. Nestes casos, delicadeza de espírito significava matar com o dedo mindinho metaforicamente levantado.
Auden talvez excluísse os gourmets do elenco de suspeitos em qualquer história policial porque, sendo gulosos, eles já teriam escolhido o pecado mais abrangente e exigente, o pecado que torna todos os outros supérfluos. Um gourmet não cometeria nenhum crime por absoluto desinteresse em pecados adicionais, pois a gula é um pecado que se sacia no ato. A luxúria é uma condição de insaciedade permanente, leva ao alívio passageiro, mas nunca à plenitude. A preguiça não chega a nenhum estado de saciedade porque nem sai do lugar. Todos os outros pecados (ira, inveja etc.) dependem do seu objeto, o próximo, para existirem. Só a gula se basta. O gourmet do Auden tem o álibi perfeito, porque é o único que não precisa ser criminoso. Será isso?
Enfim, um pouco de poesia entre as refeições.
Luís Fernando Veríssimo, in Banquete com os deuses

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