segunda-feira, 20 de janeiro de 2020

Um povo massacrado

Durante muitos anos as empresas salitreiras implantaram verdadeiros domínios, possessões ou reinos no pampa. Os ingleses, os alemães, toda sorte de invasores fecharam as áreas de produção e lhes deram o nome de escritórios. Ali impuseram uma moeda própria, impediram qualquer reunião, proscreveram os partidos e a imprensa popular. Não se podia entrar nos recintos sem autorização especial, coisa que muito poucos conseguiam.
Estive uma tarde conversando com os operários de um depósito nos escritórios salitreiros de Maria Elena. O chão da enorme oficina de trabalhos manuais está sempre enlameado pela água, azeite e ácidos. Os dirigentes sindicais que me acompanhavam e eu pisávamos sobre um estrado que nos ilhava do lamaçal.
Estes estrados – disseram – custaram-nos 15 greves sucessivas, 8 anos de petições e 7 mortos.
Estes últimos deveram-se ao seguinte: numa dessas greves, a polícia da companhia levou sete dirigentes. Os guardas iam a cavalo enquanto os operários, amarrados a uma corda, seguiam-nos a pé pelos areais solitários. Com algumas descargas foram assassinados. Seus corpos ficaram estendidos sob o sol e o frio do deserto até que foram encontrados e enterrados por seus companheiros.
Antes as coisas foram muito piores. Por exemplo, no ano de 1906, em Iquique, os grevistas desceram à cidade dos escritórios salitreiros para pleitear suas reivindicações diretamente ao governo. Milhares de homens extenuados pela travessia juntaram-se para descansar numa praça defronte a uma escola. Pela manhã iriam ver o governador para expor-lhe suas pretensões. Mas nunca puderam fazer isso. Ao amanhecer, as tropas comandadas por um coronel rodearam a praça. Sem uma palavra começaram a disparar, a matar. Mais de seis mil homens morreram naquele massacre.
Em 1945 as coisas andavam melhor mas às vezes parecia-me que retornava o tempo do extermínio. Certa vez me proibiram de falar aos operários na sede do sindicato. Chamei-os para fora do recinto e, em pleno deserto, comecei a explicar-lhes a situação, as possíveis saídas do conflito. Éramos uns duzentos. Subitamente escutei um ruído de motores e observei que se aproximava, até a quatro ou cinco metros de minhas palavras, um tanque do exército. Abriu-se a tampa e surgiu da abertura uma metralhadora que apontava para minha cabeça. Junto à arma ergueu-se um oficial, muito afetado e muito sério, que se pôs a me olhar enquanto eu continuava meu discurso. Isso foi tudo.

A confiança posta nos comunistas por aquela multidão de operários, muitos deles analfabetos, tinha nascido com Luís Emilio Recabarren, que foi quem iniciou suas lutas nessa zona desértica. De simples agitador operário, antigo anarquista, Recabarren converteu-se numa presença fantasmagórica e colossal. Encheu o país de sindicatos e federações. Chegou a publicar mais de 15 jornais destinados exclusivamente à defesa das novas organizações que tinha criado. Tudo sem um centavo, O dinheiro saía da nova consciência que assumiam os trabalhadores.
Coube a mim ver em certos lugares as prensas de Recabarren, que tinham servido de forma tão heroica e continuavam trabalhando 40 anos depois. Algumas dessas máquinas foram golpeadas pela polícia até a destruição, e depois tinham sido cuidadosamente reparadas. Notavam-se nelas as enormes cicatrizes sob as soldas feitas com carinho que as fizeram funcionar de novo.
Acostumei-me naqueles longos passeios a alojar-me nas paupérrimas casas, casinholas ou cabanas dos homens do deserto. Quase sempre era recebido por um grupo de pequenas bandeiras à entrada das empresas. Depois me mostraram o lugar em que ficaria. Por meu aposento desfilavam, durante todo o dia, mulheres e homens com suas queixas de trabalho, com seus conflitos mais ou menos íntimos. Às vezes as queixas assumiam um caráter que talvez um estranho julgaria engraçado, caprichoso, inclusive grotesco. Por exemplo, a falta de chá podia ser para eles motivo de uma greve de grandes consequências. São concebíveis urgências tão londrinas numa região tão desolada? Mas o certo é que o povo chileno não pode viver sem tomar chá várias vezes ao dia. Alguns dos operários descalços, que me perguntavam angustiados a razão da escassez da exótica mas imprescindível beberagem, argumentavam à guisa de desculpa:
É que, se não o tomamos, nos dá uma terrível dor de cabeça.
Pablo Neruda, in Confesso que vivi

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