domingo, 12 de janeiro de 2020

Um Jantar Suspenso Champs-Élysées, 1903

Dirigível Nº 3 

Em dezembro de 1903, Alberto Santos-Dumont, o pioneiro da aviação, há 11 anos residindo em Paris, ofereceu uma pequena recepção em seu apartamento no Champs-Élysées. Louis Cartier, o joalheiro, estava lá, bem como a princesa Isabel, filha de D. Pedro II, o último imperador do Brasil. Como não houve uma lista impressa de convidados, pode-se apenas conjeturar quem seriam os outros participantes do jantar. Mas seus parceiros regulares dos jantares e amigos próximos incluíam George Goursat, o sofisticado escritor e cartunista que desenhava caricaturas dos ricos e famosos nas paredes dos restaurantes da moda; Gustave Eiffel, o arquiteto da torre; Antônio Prado Jr., filho de um embaixador brasileiro; dois ou três Rothschilds, os primeiros a conhecer Santos-Dumont, agora com 30 anos, quando sua aeronave experimental caiu em seus jardins; a imperatriz Eugênia, viúva reclusa de Napoleão III; e alguns reis, rainhas, duques e duquesas, tão numerosos que é impossível mencionar todos os seus nomes.
Quando o mordomo de Santos-Dumont levou os convidados à sala de jantar, eles acharam divertido subir numa escada portátil para se sentarem em cadeiras com longos pés colocadas ao redor de uma mesa ainda mais alta. Porém não ficaram surpresos. Desde o final dos anos 1890, Santos-Dumont costumava dar “jantares aéreos”. Os primeiros foram em mesas e cadeiras normais suspensas por cabos que eram presos no teto do grande pé-direito do apartamento. Isso funcionava quando o franzino brasileiro que pesava pouco mais de 50 quilos jantava sozinho, mas, ao reunir um grupo, o teto acabou cedendo ao peso dos convidados. Santos-Dumont era um artesão habilidoso, que aprendera marcenaria com os empregados da fazenda de café de seu pai, e então construíra as mesas e as cadeiras com longos pés, que se tornaram uma característica de seu apartamento desde então. Nos primeiros jantares, os convidados, entre goles de absinto verde leitoso, perguntavam sempre qual era o objetivo dessa mesa tão alta. E o tímido anfitrião, que preferia que os outros falassem, corria seus dedos cheios de anéis entre os cabelos negros partidos ao meio, num estilo visto quase sempre em mulheres, e explicava com malícia que era para que imaginassem como seria a vida numa máquina voadora. Os convidados riam. As máquinas voadoras não existiam nos anos de 1890, e os prognósticos científicos eram desanimadores. Santos-Dumont ignorava os risinhos sarcásticos e insistia que em breve elas estariam em toda parte.
Os balões a gás eram vistos normalmente no céu de Paris ao final do século XIX, mas não eram máquinas voadoras. Sem a força de um motor, esses grandes globos flutuantes — eram descritos como esféricos, mas, na verdade, tinham a forma de uma pera invertida — estavam sempre à mercê do vento. Na virada do século, Santos-Dumont revolucionou o mundo da aeronáutica. Instalou um motor de automóvel e um propulsor num balão e, para torná-lo aerodinâmico, deu-lhe o formato de um charuto alongado. No dia 19 de outubro de 1901, milhares de pessoas o viram circunavegar a torre Eiffel em sua nova aeronave. A multidão que se aglomerou nas pontes do Sena era tão numerosa que muitos foram jogados no rio ao escalar os parapeitos para ter uma visão melhor. Os cientistas que observaram o voo do apartamento de Gustave Eiffel no alto da torre tinham a certeza de que ele não conseguiria realizá-lo. Temiam que um vento imprevisível o impelisse contra o para-raios da torre. Outros estavam convencidos de que o balão explodiria. Quando Santos-Dumont contrariou todas as previsões, Júlio Verne e H. G. Wells enviaram-lhe telegramas de congratulações.
No fim de 1903, à época dos jantares com Cartier e com a princesa Isabel, ele tornara-se uma figura familiar no céu de Paris. Desenhara uma pequena aeronave, que seus admiradores chamavam de Baladeuse (“Andarilho”), seu transporte pessoal, na qual passeava, amarrando-a nos lampiões a gás diante dos locais noturnos em moda na cidade. O Baladeuse era tão fácil de manejar quanto esta nova invenção, o automóvel, que percorria barulhento as ruas de Paris, mas tinha a vantagem de não assustar os cavalos nem os pedestres ao voar. Os dirigíveis de corrida maiores eram mais complicados de manobrar e Santos-Dumont queixou-se com Cartier que não conseguia calcular o tempo de seus voos, porque era muito perigoso tirar as mãos dos controles para puxar o relógio de bolso. Cartier prometeu arranjar uma solução e logo depois inventou um dos primeiros relógios de pulso para ele — uma versão comercial que se tornaria um acessório indispensável para os parisienses sofisticados.
Santos-Dumont tinha uma visão romântica na qual todas as pessoas no mundo possuiriam seus próprios Baladeuses e, assim, seriam livres como pássaros para viajar a qualquer lugar que quisessem e a qualquer momento que lhes desse vontade. O futuro das aeronaves, pensava, estava no balão mais leve que o ar e não no aeroplano mais pesado que o ar, o qual até quanto sabia não progredira além dos planadores não propelidos. Ele imaginava aeronaves gigantescas — não zepelins rígidos, mas balões grandes e flexíveis com o local de carga suspenso na parte de baixo — transportando passageiros entre Paris e Nova York, Berlim e Calcutá, Moscou e Rio de Janeiro.
Santos-Dumont não acreditava em patentes e divulgou amplamente os projetos de seus dirigíveis. Ele via as aeronaves como carruagens da paz, contatando culturas diferentes para que os povos se conhecessem e reduzindo, dessa forma, as possíveis hostilidades. Em retrospecto, parece uma visão ingênua, com a Primeira Guerra Mundial a uma década mais adiante, porém seu otimismo não era incomum nos meios científicos na virada do século, quando novidades como a luz elétrica, o automóvel e o telefone transformaram de modo radical a sociedade.
Nessa noite de dezembro de 1903, Santos-Dumont e seus amigos conversaram sobre o ano esplêndido que ele passara. Não tivera seus acidentes usuais, que o tornaram famoso como o homem que desafiava constantemente a morte. Não caíra em telhados de hotéis parisienses, nem fizera mergulhos inesperados no Mediterrâneo, ou súbitas aterrissagens em locais estranhos. Fora um ano tranquilo. No Baladeuse, ele possuía o céu da França. Era o único que estava sempre voando em uma aeronave. Quando o copeiro serviu vinho aos convidados, Cartier e a princesa Isabel fizeram um brinde à engenhosidade do anfitrião. Ninguém mais estava perto de dominar o ar — ou assim parecia.
Ansioso por um novo desafio, Santos-Dumont juntou-se à competição para construir e voar no primeiro avião do mundo. Durante uns poucos meses, parecia ter sido bem-sucedido, mas, depois de um voo pioneiro duramente discutido, essa glória coube a Wilbur e Orville Wright, que haviam feito uma experiência em segredo. Santos-Dumont reteve a distinção de ter voado no primeiro avião na Europa, e seu entusiasmo e sua perseverança inspiraram aeronautas em todo o continente.
No início, a aeronáutica na Europa funcionava como um clube de cavalheiros. Os encontros de balões nas manhãs de domingo substituíam as partidas de polo ou as caçadas de raposas. As máquinas voadoras eram um divertimento para os homens ricos que possuíram os primeiros automóveis — os barões do petróleo, advogados abastados e os magnatas da imprensa. Eles aceitaram Santos-Dumont como um deles porque era um filho bem-educado de um rico fazendeiro de café. Eles apoiavam os inventores de dirigíveis e aviões financiando seus projetos e oferecendo prêmios lucrativos para os experimentos aeronáuticos “pioneiros”: o primeiro a contornar a torre Eiffel num balão a motor, o primeiro a voar 45 metros em um avião e o primeiro a atravessar o canal da Mancha.
O aspecto recreativo dessas competições tinha como objetivo disfarçar seu perigo. Mais de duzentos homens, muitos deles com mulheres e crianças, alguns grandes engenheiros e inventores à sua época, morreram em acidentes antes do sucesso de Santos-Dumont. Os pioneiros da aeronáutica não possuíam as técnicas modernas para construir uma aeronave capaz de voar com segurança. A única maneira de provar que poderiam voar era fazendo experimentos arriscados, porque a maioria dessas máquinas precárias não ascendia, não tinha estabilidade no ar ou não conseguia pousar ilesa. Santos-Dumont conhecia os riscos da aerostação. E embora falasse com os amigos que voar era o maior prazer de sua vida, ele não teria se exposto tanto ao perigo se não fosse por uma meta mais ambiciosa — a invenção de uma tecnologia que revolucionaria os meios de transporte e promoveria a paz mundial.
A primeira metade de sua meta realizou-se durante sua vida. Hoje, o avião é o principal meio de transporte de longa distância. Só nos Estados Unidos decolam 90.700 voos por dia. E no Brasil 157 aviões partem para a Europa todas as semanas. O tempo de voo de São Paulo a Paris é de 11 horas, um percurso que Santos-Dumont faria em mais de uma semana de navio e trem. No entanto, seu objetivo de contribuir para a paz mundial não foi plenamente realizado. Os aviões comerciais, o telefone, o rádio, a televisão, e agora a Internet transformaram o mundo em uma comunidade global. Se um terremoto atingir El Salvador, o transporte aéreo de alimentos de Londres para o local atingido pode ser realizado em horas. Se uma epidemia de Ebola for detectada no Congo, os médicos dos Centers for Disease Control podem chegar lá em um dia. Porém, a aviação militar fez milhares de vítimas não apenas em Hiroshima e Nagasaki, mas também no curso normal da guerra. E em uma manhã do dia 11 de setembro de 2001, algo inconcebível aconteceu: dois aviões comerciais converteram-se diabolicamente em mísseis de ataque a arranha-céus. A primeira grande invenção do século XX tornou-se o pesadelo do século XXI.
A motivação dos irmãos Wright ao desenvolver o avião era diferente da de Santos-Dumont. Eles não eram idealistas nem sonhavam reunir pessoas distantes umas das outras. Não buscavam emoções fortes nem romantizavam o prazer de voar, ou tinham uma certa espiritualidade aérea. Não eram esportistas com senso de humor e com certeza não ofereciam jantares em cadeiras com longos pés. Eles pretendiam construir aeronaves com intuito financeiro, e quando inicialmente o governo dos Estados Unidos recusou-se a financiá-los, eles não tiveram escrúpulos em se aproximar de militares estrangeiros.
Às vésperas da Primeira Guerra Mundial, quando era evidente que o avião poderia ser usado como uma arma de destruição em massa, Santos-Dumont foi o primeiro aeronauta a manifestar-se contra a militarização das aeronaves. Era uma voz solitária, conclamando os chefes de Estado a desativar suas bombas. Orville Wright não se juntou a esse apelo (nessa época, Wilbur já havia morrido).
Santos-Dumont foi talvez o homem mais prestigiado de Paris nos primeiros anos do século XX. Sua imagem elegante estampava-se em caixas de charutos, caixas de fósforos e aparelhos de jantar. Desenhistas de moda fizeram negócios prósperos com réplicas de seu chapéu-panamá e com seus colarinhos altos e duros dos quais ele tanto gostava. Fabricantes de brinquedos não conseguiam produzir quantidade suficiente de modelos de seus balões. Até mesmo os confeiteiros franceses o homenageavam com bolos em forma de charuto decorados com as cores da bandeira brasileira.
Ele era famoso em ambos os lados do canal da Mancha — na verdade, em ambos os lados do Atlântico. “Quando os nomes daqueles que ocuparam posições de destaque no mundo forem esquecidos”, declarou o Times londrino em 1901, “um nome permanecerá em nossa memória, o de Santos-Dumont.”
Hoje, seu nome quase não é lembrado fora do Brasil, onde ainda é um herói de míticas proporções. Uma cidade, um grande aeroporto e diversas ruas têm seu nome. A mera menção de seu nome provoca um sorriso na maioria dos brasileiros, quando eles imaginam a época em que seu ousado conterrâneo cruzava orgulhosamente os céus em um pequeno balão. Assim como o resto do mundo em grande parte esqueceu Santos-Dumont, os brasileiros, ao romantizá-lo em poemas, canções, estátuas, bustos, pinturas, biografias e comemorações em sua memória, esquecem seu lado negativo. Ele foi um gênio torturado, um espírito livre que buscava escapar do confinamento da gravidade, da rivalidade de seus companheiros aeronautas, do isolamento de sua educação num meio rural, da visão estreita dos cientistas mais velhos, da conformidade da vida de casado, dos estereótipos sexuais, e mesmo do destino de sua querida invenção.
Muitos meninos sonharam em ter uma máquina de voar, uma espécie de carro alado que pudesse decolar e pousar em qualquer lugar sem precisar de uma pista de pouso. No século XXI, ninguém realizou esse sonho. Uma pequena elite corporativa utiliza helicópteros para ir ao trabalho, voando entre locais de pouso seguros e os telhados dos escritórios. Mas mesmo um poderoso industrial cosmopolita não pode voar até seu restaurante favorito, ao teatro ou a uma loja. Um único homem na história usufruiu essa liberdade. Seu nome foi Alberto Santos-Dumont, e seu corcel aéreo era um balão dirigível.
Paul Hoffman, in Asas da loucura

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