Tomara
poder desempenhar-me, sem hesitações nem ansiedades, deste mandato
subjetivo cuja execução por demorada ou imperfeita me tortura e
dormir descansadamente, fosse onde fosse, plátano ou cedro que me
cobrisse, levando na alma como uma parcela do mundo, entre uma
saudade e uma aspiração, a consciência de um dever cumprido.
Mas
dia a dia o que vejo em torno meu me aponta novos deveres, novas
responsabilidades da minha inteligência para com o meu senso moral.
Hora a hora a (...) que escreve as sátiras surge colérica em mim.
Hora a hora a expressão me falha. Hora a hora a vontade fraqueja.
Hora a hora sinto avançar sobre mim o tempo. Hora a hora me conheço,
mãos inúteis e olhar amargurado, levando para a terra fria uma alma
que não soube contar, um coração já apodrecido, morto já e na
estagnação da aspiração indefinida, inutilizada.
Nem
choro. Como chorar? Eu desejaria poder querer (desejar) trabalhar,
febrilmente trabalhar para que esta pátria que vós não conheceis
fosse grande como o sentimento que eu sinto quando nela penso. Nada
faço. Nem a mim mesmo ouso dizer: amo a pátria, amo a humanidade.
Parece um cinismo supremo. Para comigo mesmo tenho um pudor em
dizê-lo. Só aqui lho registo sobre papel, acanhadamente ainda
assim, para que nalguma parte fique escrito. Sim, fique aqui escrito
que amo a pátria funda, (...) doloridamente.
Seja
dito assim sucinto, para que fique dito. Nada mais.
Não
falemos mais. As coisas que se amam, os sentimentos que se afagam
guardam-se com a chave daquilo a que chamamos "pudor" no cofre do
coração. A eloquência profana-os. A arte, revelando-os, torna-os
pequenos e vis. O próprio olhar não os deve revelar.
Sabeis
decerto que o maior amor não é aquele que a palavra suave puramente
exprime. Nem é aquele que o olhar diz, nem aquele que a mão
comunica tocando levemente noutra mão. É aquele que quando dois
seres estão juntos, não se olhando nem tocando os envolve como uma
nuvem, que lhes (…)
Esse
amor não se deve dizer nem revelar. Não se pode falar dele.
Fernando
Pessoa,
in
Inéditos
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