segunda-feira, 20 de janeiro de 2020

Lavoura Arcaica - 10

(Fundindo os vidros e os metais da minha córnea, e atirando um punhado de areia pra cegar a atmosfera, incursiono às vezes num sono já dormido, enxergando através daquele filtro fosco um pó rudimentar, uma pedra de moenda, um pilão, um socador provecto, e uns varais extensos, e umas gamelas ulceradas, carcomidas, de tanto esforço em suas lidas, e uma caneca amassada, e uma moringa sempre à sombra machucada na sua bica, e um torrador de café, cilíndrico, fumacento, enegrecido, lamentoso, pachorrento, girando ainda à manivela na memória; e vou extraindo deste poço as panelas de barro, e uma cumbuca no parapeito fazendo de saleiro, e um latão de leite sempre assíduo na soleira, e um ferro de passar saindo ao vento pra recuperar a sua febre, e um bule de ágata, e um fogão a lenha, e um tacho imenso, e uma chaleira de ferro, soturna, chocando dia e noite sobre a chapa; e poderia retirar do mesmo saco um couro de cabrito ao pé da cama, e uma louça ingênua adornando a sala, e uma Santa Ceia na parede, e as capas brancas escondendo o encosto das cadeiras de palhinha, e um cabide de chapéu feito de curvas, e um antigo porta-retrato, e uma fotografia castanha, nupcial, trazendo como fundo um cenário irreal, e puxaria ainda muitos outros fragmentos, miúdos, poderosos, que conservo no mesmo fosso como guardião zeloso das coisas da família.)
Raduan Nassar, in Lavoura Arcaica

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