domingo, 12 de janeiro de 2020

A oração do filho

Mas, antes de nos deixarmos, vinde comigo depor estas homenagens, estes troféus, estes símbolos no altar que os deve receber.
Espírito supremo daquele que me ensinou a sentir o direito, e querer a liberdade; daquele cuja presença íntima respira em mim nas horas do dever e do perigo; daquele a quem pertence, nas minhas ações, o merecimento da coerência e da sinceridade; emanação da honra, da veracidade e da justiça, espírito severo de meu pai; imagem da bondade e da pureza, que verteste em minha alma a felicidade do sofrer e do perdoar, que me educaste no espetáculo divino do sacrifício coroado pelo sacrifício, carícia do céu na manhã dos meus dias, aceno do céu no horizonte da minha tarde, anjo da abnegação e da esperança, que me sorris no sorriso de meus filhos, espírito sideral de minha mãe se o bem desabotoa alguma vez à superfície agreste de minha vida, vós sois a mão do semeador, que o semeou, vós, cuja energia me criou o coração e a consciência, cuja benção derramou a fecundidade sobre as urzes de minha natureza. Quando, na minha existência, alguma coisa possa inspirar gratidão, ou simpatia, não me tomem senão como o fruto em que se mitiga a sede, e que se esquece. Vós, autores benignos do meu ser, vós sois a árvore dadivosa cujos benefícios sobrevivem no reconhecimento, que não murcha. Estas flores, magia de um jardim instantâneo, onda esparsa de uma alvorada balsâmica, estas flores em que se desentranha, ao contacto da Bahia, o berço, que me afofastes com a vossa ternura, que me guardastes com as vossas vigílias, que me perfumastes com as vossas virtudes, estas flores são vossas: recebeia-as. Que elas envolvam no seu aroma a vossa memória, reabram, em cada geração de vossos netos, aos pés da vossa cruz, e deixem cair o refrigério de seu orvalho sobre as paixões corrosivas, que ulceram a pátria, amofinando-lhe o presente, ameaçando-lhe o futuro.
Rui Barbosa, in Antologia

Nenhum comentário:

Postar um comentário